Até que ponto o prazer ao ver a série «Penny Dreadful» não desmentirá o absoluto ateísmo de que me reivindico ao assumir-me como materialista dialético? É a questão que a Elza me coloca apesar de me conhecer há mais de quarenta anos.
O fascínio por esse lado gótico da “realidade” radica decerto na infância: nascemos e crescemos ambos numa aldeia (Caparica) muito perto da capital, mas onde há meio século convivíamos permanentemente com o sobrenatural. O Gregório, peixeiro ambulante, estaria possuído pelo Demónio apesar de só revelar os efeitos da epilepsia. As doenças não tinham causas naturais, mas eram mais facilmente explicadas pelos bruxedos encomendados por quem quereria mal às vítimas desses sintomas. E eram ainda mais temíveis se esses males eram atirados ao mar. Por outro lado, ainda não existindo iluminação pública, as noites de Lua Cheia implicavam ficar-se em casa com medo dos lobisomens, particularmente do Epifânio, que sairia nessas alturas para alimentar-se das suas vítimas.
O clima de medo perante o sobrenatural ainda mais se adensava por viver numa casa antiga com soalhos de madeira onde era frequente o som dela a estalarem sem explicação, acrescentado ao ruído causado pelos ratos do sótão onde ninguém ia e era um autêntico cenário de filme da Hammer com o chão e as paredes cobertas de teias de aranha e de pó.
O primeiro rombo nessas crenças acontecerem-me quando teria uns cinco anos e a aldeia foi sacudida pela revelação quanto a um suposto fantasma, que andava a assustar há algumas semanas quem nela vivia: tratava-se de uma das mais beatas criaturas da Igreja que, à noite, deixava o leito conjugal para, embrulhada num lençol, ir ao encontro do amante. Denunciada por uns quantos valentões, que se juntaram para desvendar o mistério, ainda me recordo de ter dado um chilique à referida senhora quando, em homilia num terço ao fim da tarde, o padre vituperou quem praticava pecados carnais.
Não sei se a mudança subsequente para uma casa nova, na zona em expansão da aldeia, influiu seriamente no meu inconsciente: a modernidade entrava em força num estilo de vida em que também se associava a compra de um primeiro carro e a atenção crescente para o mundo ditada pela televisão.
Nesse inicio da década de sessenta outro tipo de horror começava a assombrar as minhas noites: a da guerra em África e para onde estaria prometida a minha participação, quando «fosse grande». Os soldados do quartel da Trafaria a passarem pelas ruas da aldeia, suscitavam uma cadência ao marcharem, que alimentavam os piores pesadelos. Até porque, desprevenidamente, os meus pais permitiam-me que visse um programa intitulado «Títulos de Caixa Alta» onde vi corpos de brancos esquartejados pela fúria vingativa dos «turras».
A realidade sobrepunha-se, dia-a-dia, ao sobrenatural e, na segunda metade da década de sessenta já a ciência o marginalizava para as fronteiras das histórias da carochinha, quando os norte-americanos da missão Apollo se iam aproximando mais e mais da Lua até nela alunarem.
Tantos anos depois uma série tão bem feita como «Penny Dreadful» tem o condão de me devolver a uma fase muito recuada da pessoa que fui. E, sobretudo, explorando todos os personagens criados pelos romances fantásticos do século XIX britânico, ajudar a perceber como mitos radicados num passado muito remoto e transmitido pela tradição oral de geração em geração, conseguiram transformar-se em grande literatura e, agora, em excelente proposta televisiva.
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