A situação francesa não pode deixar indiferente quem se situa politicamente à esquerda e, como é o meu caso, possui familiares muito próximos em Paris e Bordéus cujo futuro justifica pertinente apreensão.
O terrorismo é um dos fatores influentes por estes dias mas o seu sucesso ou insucesso muito deve, no imediato, a uma política ativa de segurança, muito embora ambígua no respeito pelos direitos individuais do cidadão comum.
Mas, a longo prazo, a forma de a ele responder tem tudo a ver com as políticas seguidas pelo governo, desde a estratégia macroeconómica até à que incide mais diretamente no bem-estar dos cidadãos. E a verdade é esta: quanto maior o sucesso dessas opções para gerarem emprego e crescimento mais bem sucedida será a integração, que impedirá os jovens da segunda ou terceira geração de emigrantes de se alistarem em seitas e grupos terroristas.
A frustração atual reside no facto de existir um governo supostamente de esquerda que, em vez de resolver os problemas, antes os está a agravar como se constata com o grande movimento grevista dos últimos meses, quando foram frequentes as greves e manifestações invariavelmente sacudidas por violentos embates entre a polícia de choque e alguns dos participantes em tais protestos. Ainda tendo na memória os acontecimentos de maio de 1968, podemo-nos interrogar se estamos à beira de uma nova ameaça de guerra civil.
Para Didier Eribon, colunista frequente do «Libération» ou do «L’Obs», essa hipótese não se coloca apesar do ambiente de «revolta social» contra uma Lei do Trabalho indigna de um governo, que se autodesigna de socialista, mas consegue ultrapassar a extrema-direita no seu extremismo antilaboral já que a própria Marine le Pen pronunciou-se contra tal legislação destinada a precarizar o vínculo entre empregados e patrões e acabar com os contratos coletivos por setor.
Filósofo e professor universitário, Eribon lembra que, muito embora haja quem o queira esquecer, a luta de classes existe e está a manifestar-se.
Nesse sentido ele questiona-se quanto a uma eventual vitória da Frente Nacional, porque nem sequer ela conseguirá pôr cobro ao descontentamento dos assalariados com uma situação contra a qual não hesitarão em combatê-la. O teste de fogo, que a extrema-direita eventualmente passará, servirá para dela se voltarem a dissociar os que a ela aderiram vindos da esquerda, até mesmo da comunista, condenados a rapidamente desiludirem-se com a inconsistência de um discurso político apenas baseado no ódio aos emigrantes.
Quando se constatar - como já se vislumbra nas cidades já geridas pela Frente Nacional - que não têm soluções para uma boa gestão coletiva e até se revelam pródigos em enredarem-se na corrupção mais primária, as manifestações agora convocadas pelos sindicatos mais à esquerda só engrossarão em protestos mais veementes.
Eribon aborda muitos dos elementos, que estão na origem da crise atual, no seu livro autobiográfico «Retour à Reims», publicado em 2009, onde mistura momentos da sua biografia, com análise sociológica.
Filho de um operário e de uma empregada doméstica a dificuldade sentida em progredir socialmente decorreu de uma França organizada em classes muito rígidas, que o levou a omitir essas origens para progredir nos meios académicos parisienses.
Envergonhado, sentiu-se «refugiado de classe» e «trânsfuga de si mesmo», reinventando-se a partir de uma dolorosa rutura com a família. Sobretudo por se descobrir homossexual, o que o tornou inaceitável para o meio onde nasceu. Daí a dupla estigmatização perante essa homofobia do seu meio familiar, mas também como racismo anti operário da burguesia onde, como universitário, se pretendia enquadrar.
O romance cobre um largo período, desde os anos 50 até à França de hoje, sendo óbvia a correlação entre o fracasso da esquerda e a ascensão da Frente Nacional.
Ao reorientar os socialistas para uma tendência neoliberal e reformista, Mitterrand traiu os seus objetivos e os dos que pretendia representar. Como nos podemos admirar de os ver agora entregues à xenofobia, à islamofobia, ao nacionalismo e a uma visão estéril de um Estado-Providência como ele já não pode voltar a ser?
Eribon constata isso mesmo na mãe e no irmão com quem o reencontro é tenso devido às divergências ideológicas, que os passaram a dividir. E, no entanto, a cidade de Reims foi considerada até há pouco tempo um feudo seguro dos comunistas! Hoje passou a ser o de uma extrema-direita alimentada à custa de um insano discurso de ódio.
Para Didier Eribon os problemas estão muito para além da Lei do Trabalho, que tem trazido multidões para as ruas. Têm a ver não só com o futuro da França, mas também da própria Europa. Se a esquerda não conseguir reorientar a sua ação para o apoio aos que socialmente são mais desfavorecidos, a luta internacional entre assalariados e patrões será desvirtuada pela que não faz nenhum sentido: a dos trabalhadores contra emigrantes.
«Retour à Reims» constitui um manual muito útil para melhor compreender os tempos presentes.
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