Quem já esqueceu as palavras de Isabel Jonet, quando participou num programa televisivo em que estava em causa a questão da pobreza? O que ela revelou foi algo que tem sido abordado pela filosofia, nomeadamente por Daniel Batson, como tratando-se de um falso altruísmo caracterizado por estar-se aparentemente a fazer o bem, mas na expetativa de se recolherem dividendos dessa ação ostentada para sociedade como se fosse completamente desinteressada. Seja na expectativa de se ser compensado dentro de uma perspetiva religiosa, seja na da criação de um sucesso social, estamos bem servidos de exemplos de quem anda a «brincar à caridadezinha» como José Barata Moura cantava há quarenta anos.
O altruísmo pode ser entendido como o contrário do egoísmo, mas as fronteiras que os opõem são muitas vezes assaz ambíguas. O próprio Arthur Schopenhauer, que teorizou sobre o egoísmo, entendendo-o como a característica, que mais une o ser humano e os outros animais, personificou ele próprio essa ambiguidade ao interessar-se bastante sobre o budismo. Ora, que pensamento cosmogónico melhor assenta numa solidariedade orgânica entre todos os seres vivos?
A própria lógica do tudo para mim e nada para os outros é desmentida no próprio reino animal, onde é conhecido o que sucede quando uma alcateia é ameaçada por um predador, havendo sempre um dos elementos do grupo, que se deixa ficar para trás, a fim de, com o seu sacrifício, facilitar a salvação dos demais.
Há nesse gesto a compreensão de uma interdependência, que fortalece a existência de cada um dos seus elementos dentro de um grupo, por muito que essa diluição no coletivo seja sentido pelos egoístas como uma ameaça ao seu ego. O altruísmo será, pois, a explosão da bolha egocêntrica, que tende a isolar o indivíduo na defesa do seu exclusivo interesse.
Um bom exemplo dessa generosidade para com os outros ocorre com o altruísmo materno simbolizado no amor maternal. À partida uma mãe dedica ao filho o exclusivo do seu amor com o máximo despojamento dos seus próprios interesses. O verdadeiro desafio social reside em conseguir transformar esse genuíno altruísmo cingido a um beneficiário desse sentimento em algo que se extravasa para outrem. Mas o próprio reino animal dá-nos uma similitude dessa dificuldade nas leoas, que alimentam as suas crias e quiçá as sobrinhas, mas já com alguma renitência em relação a estas.
Voltando à responsável pelo Banco Alimentar um dos melhores exemplos literários de alguém que se lhe assemelha quase caricaturalmente é aquela personagem de Proust a quem a criada traz deliciosos croissants, logo gulosamente devorados enquanto lê no jornal a notícia do naufrágio do «Lusitânia» e todas as mortes aí verificadas. Conta Proust que ela ter-se-á então sentido triplamente feliz, porque ao prazer das suas pupilas gustativas acrescentava-se a compaixão com todas essas vítimas e o comprazimento de se ter sentido a salvo de tal tragédia. De ter acontecido a outrem que não ela.
A verdadeira satisfação do altruísta reside em sentir a alegria interior de praticar o bem, limitando-se a ser uma «boa pessoa», sem procurar noutrem o reconhecimento dessa condição. É fazê-lo, de facto, desinteressadamente por ser essa a melhor forma de contribuir para a evolução coletiva no sentido dessa tal interdependência sem a qual estaremos perdidos na solidão, no sinistro cada um por si...
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