Houve um tempo em que subscrevi a opinião de José Saramago em como Valter Hugo Mãe iria ser um dos grandes romancistas da literatura portuguesa. É que os três primeiros títulos que dele li - «o remorso de baltazar serapião», «o apocalipse dos trabalhadores» e «a máquina de fazer espanhóis» - foram-me entusiasmando progressivamente como leitor, adivinhando-lhe bitolas de qualidade ainda mais exigentes em função do seu amadurecimento como pessoa e autor.
Não é por ter feito da Islândia o espaço ficcional nos dois romances seguintes, que me dececionei com eles. Afinal esse até é dos países mais bonitos, que conheci. Mas é que, à custa de querer tornar-se universal nos temas, Valter Hugo Mãe tem perdido a especificidade geográfica lusa de criar ficções com muita ligação crítica à nossa realidade.
O seu livro de contos do ano passado vem avalizado com o prefácio de Mia Couto e com o contributo de diversos artistas plásticos, mas não ilude uma evidência: tratando-se de textos que se leem bastante agradavelmente, estão longe de constituir Contos com maiúscula, daqueles que garantem ao autor o elogio irrefutável de quem encontra no género uma qualidade superlativa.
Tendo só lido os seis primeiros dos onze contos do livro, o primeiro é o que mais me agradou até agora. Em «A Menina que carregava bocadinhos» há a denúncia de relações muito desiguais entre a classe dos patrões e a dos assalariados. Na destes últimos está a menina contratada aos nove anos para servir de criada numa casa senhorial “em troca de sopa e de um colchão estreito”.
Conhecemos bem o quanto andou próxima da escravatura clandestina o relacionamento de gerações sucessivas de empregadas domésticas com quem se julgava a praticar ato de caridade ao resgatá-las da miséria provinciana para lhes dar alguns laivos do “esplendor” citadino.
Na história de Valter Hugo Mãe a menina vai crescendo até arriscar a sua definitiva libertação.
O outro conto que se distingue dos restantes, quanto à imaginação, é o de «A princesa com alma de galinha» por partir de um pressuposto subversivo: a princesa herdeira do trono a todos escandaliza ao aspirar à carreira de enfermeira. Mas determinada a seguir essa opção, mesmo arriscando-se ao internamento num colégio de rígida disciplina, consegue tomar ao seu cuidado os ovos de um pássaro desaparecido, chocando-os até deles saírem avezinhas graciosas e agradecidas, porque logo sensibilizam a corte ao esvoaçarem para o ombro da princesa como sinal da esperança.
Nos outros contos temos uma mãe que perdeu um filho, que desaparecera no mar e passa a ver nos muitos jarros de água, que acumula a presença simbólica do desaparecido até quase convencer-se da sua efetiva recuperação.
O «Querido Monstro» tem a ver com os amigos secretos de um miúdo . Um é o monstro triste que ele procura fazer rir com cócegas. O outro um velho lobo com pouca vontade para se mexer. É quando conhece uma nova colega de escola, que esses amigos deixam de fazer sentido na sua existência.
«O Rosto» tem a ver com o filho de um guarda florestal, que se habituou a descortinar os mais variados matizes da paisagem vista da colina onde cresceu. Mas na escola a professora convence-a da possibilidade de descobrir o mesmo tipo de diversidade nos rostos daqueles com quem se cruza.
Fiquei-me na história do «rapaz que habitava os livros», história de amor pela literatura concluída com a verdadeira felicidade de dentro deles conseguir finalmente viver.
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