Pode-se crer numa justiça divina? O que devemos pensar de quem se comporta de acordo coma crença na promessa do Paraíso ou da ameaça do Inferno? De que vale a virtude se subordinada a um interesse? E se o facto de acreditar-se no Paraíso equivalesse a uma demonstração de impiedade?
Nos «Ensaios» o muito católico Montaigne nota que “quando Maomé promete, a quem nele cré, um paraíso alcatifado e ornamentado de ouro e pedras preciosas, povoado de raparigas de invulgar beleza, de vinhos e petiscos raros, só posso depreender que se trata de um trocista apostado em aproveitar-se da nossa estupidez e atrair-nos através dessas opiniões e expetativas tão convenientes aos nossos prosaicos apetites.”
Na prática o filósofo francês põe em causa a ideia de que possa existir um Paraíso, que coincida com a representação dele feita por Hyeronymus Bosch no seu «Jardim das Delícias». Pelo contrário, fiel à sua crença, Montaigne considerava que só recorrendo ao inimaginável se poderia ter uma ideia do que ele seria de facto.
No entanto o pintor holandês procurara representá-lo no tríptico em que o painel da esquerda tenta mostrar o paraíso possível de encontrar na Terra, mas idealizado no seu melhor, com a nudez assumida na casta pureza. O painel central é olhado como essa concetualização do que seria o Paraíso post-mortem, mas com alguns detalhes surpreendentes: alguém que, no lado esquerdo, junto a alguns pássaros enormes, está manifestamente aborrecido ou em evidente sofrimento, assim como uma relação sexual com duvidoso mútuo consentimento. O painel da direita equivaleria ao Inferno, ou seja à condenação dos que teriam desmerecido das prometidas recompensas.
Há outos aspetos curiosos: no painel central Bosch inscreve uma idealização de como homens e mulheres teriam vivido se Adão e Eva não tivessem pecado e no da direita - característica surpreendente na obra do pintor! - há inúmeros objetos a entrarem entre as nádegas dos condenados como deliberada forma de tortura.
Voltando à imagem do homem que se aborrece no Paraíso há o paradoxo dele acabar por constituir uma outra forma de punição por nada mais se desejar?
Quem será mais infeliz, esse entediado habitante do Paraíso ou o supliciado do painel da direita, que sobe uma escada com uma flecha enfiada no ânus? A questão conota-se com aquele dilema sobre quem desejaria viver em permanente orgasmo. Não se transformaria insuportável essa condição priapesca?
No nosso quotidiano a crença no Paraíso traduz-se em descreve-lo como um espaço de repouso para quem está sofredor. E, quase sempre, como o sítio onde se reencontrarão os que se amaram e se perderam. O catolicismo tem, porém, uma outra singularidade: ao possibilitar aos crentes a ressurreição dos corpos não lhes limita a imortalidade à mera sobrevivência dos «espíritos». Como se a identidade de cada um não possa prescindir da sua natureza física. E há quem acredite piamente, que essa ressurreição ocorrerá com o aspeto, que teria tido aos 33 anos, ou seja a idade de Cristo, quando fora pendurado na cruz, o que não deixa de colocar questão pertinente sobre a alternativa para os que morrem mais cedo.
Os budistas possuem uma perspetiva que, paralelamente, pode ajudar a situar o que seria esse Além sem a ressurreição dos corpos: identificando os seres com os respetivos espíritos, os corpos servir-lhes-iam de santuários provisórios enquanto transitariam por essa fase aparente da sua evolução.
Conclui-se que a ideia de um Paraíso ou um além mais radioso é transversal às religiões e até Kant, que defendia bastar ao virtuoso contentar-se com as suas virtudes, acaba por render-se à ideia delas virem a ser ulteriormente premiadas. Essa Utopia futura acaba por ser uma ideia motivadora para prosseguir na busca de uma certa autoperfeição.
Há contudo os que vivem o Inferno na Terra, sobretudo quando se confrontam com a possibilidade de ter a morte como iminente numa situação de guerra ou de terrorismo, e pressentem ter vivido num prévio paraíso antes de se sujeitarem a experiências tão extremas. Ele seria, afinal o vivido diariamente com as suas rotinas e inquietações, mas também com os prazeres e demais satisfações, que a absurda ameaça valoriza como nunca até aí se terão dimensionado. Pode-se então depreender que o Paraíso ou o Inferno são vividos nesta efémera existência, que cada um deve potenciar, aproximando-se tanto quanto possível do primeiro e descartando o segundo se puder livrar-se das circunstâncias, que o tornam previsível.
Em suma: esperança ou presença? O Paraíso situa-se no Além ou pode ser vivido aqui mesmo, conquanto se tenha sol e Amor? Haverá que conjeturar sobre um Inferno para além da morte, se o último século tem sido tão fértil nas suas manifestações junto dos seres viventes? Para quê procurar o Céu se as suas benesses estão ao nosso alcance, mesmo que, segundo Cioran, as nossas vidas estejam permanentemente ameaçadas pelo Inferno e em que cada instante deve ser vivido como um milagre?
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