segunda-feira, novembro 05, 2018

(DIM) «Silvestre» de João César Monteiro (1981)


Este é daqueles filmes, que me confrontam com a evidência do quanto envelheci. Conheci muitos dos atores - Luís Miguel Cintra, Jorge Silva Melo, Teresa Madruga, Cucha Cavalheiro ou a ainda muito jovem Maria de Medeiros - quando ainda nem vinte anos tinha, os palcos de Lisboa exultavam com excelentes peças de teatro e o 25 de abril abrira fronteiras para todos os sonhos felizes. Compará-los como eram, e agora são, só me confirma o que o espelho diz todas as manhãs.  Passaram os anos, acumularam-se as experiências, com as muitas alegrias e deceções, mas no essencial - o desejo da Utopia! - continua a ser o mesmo.
Há também os que desapareceram, como João Guedes, Raquel Maria ou Rui Furtado, que me deram outras gratas memórias, fossem elas as do excelente »Abelha na Chuva», para o primeiro, ou os seus desempenhos na Cornucópia, para os outros dois. Também pelo resgatar de lembranças bem aventuradas a revisão de «Silvestre» voltou a ser jubilatória. Reconheço, porém, que fiquei algo desconcertado, quando o vi na estreia, julgo que no Quarteto. Que teria motivado João César Monteiro a adaptar ao cinema uma história tradicional da cultura portuguesa, quando a atualidade exigiria que nela focasse a atenção? Recordo que era tempo de refluxo intenso da revolução de abril, com a Reforma Agrária a sofrer sucessivos ataques e as direitas a defenderem a urgência das reprivatizações para as quais se mobilizara o governo de Sá Carneiro no ano anterior. Que sentido faria o resgate de uma história situada na Idade Média, quando o país andava dividido em feudos e o diabo era ameaça tão assustadora quanto a dos mouros afugentados para o sul da Península?
Hoje, que as paixões políticas de então já se morigeraram, pode-se ver «Silvestre» com outras perspetivas, não só encontrando muitas das características - sobretudo nos diálogos entre as personagens e na sua explicita sexualidade! - dos filmes ulteriores do realizador, mas também compreendendo como no mito da donzela, que vai à guerra, há muitos elementos esclarecidos pelo psicanalista Bruno Bettelheim, quando analisou os contos infantis.
A história é a da punição de uma rapariga, que desobedece ao pai e por isso se vê duradouramente ameaçada pelo inimigo, que fizera um pacto com o diabo. O corte da mão equivale obviamente à castração de quem anseia penetrar-lhe a carne, ameaçando-a de morte (não associam os franceses a expressão «la petite mort» ao prazer feminino?). E o filme conclui-se com o encontro de Sílvia com as estrelas numa evidente coincidência com o mito mariano, que teve em Fátima a sua expressão maior.
Pode-se alegar que os meios eram escassos - mormente nas cenas das batalhas! - mas João César Monteiro foi engenhoso na forma como permitiu ao diretor de fotografia, Acácio de Almeida, transformá-las em autênticos quadros de uma beleza, que supera qualquer reticência. De princípio ao fim o cuidado com a imagem é irrepreensível.
Voltar a este belíssimo «Silvestre» constituiu leda experiência, que me devolveu a muito do que de melhor na minha mente se oculta...

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