Das trincheiras da Flandres tive a sorte de recolher testemunho em primeira mão, porque costumava pedir ao meu avô João, que contasse o quanto ali vivera naquele ano de 1918. Ele integrara o Corpo Expedicionário Português com que o governo republicano procurou legitimar o seu reconhecimento pelas demais chancelarias europeias e conservar as colónias em África, quando se concluísse o conflito.
Infelizmente ele morreu, quando eu tinha treze anos, impedindo-me de fazer-lhe perguntas mais informadas com o que ia lendo nos livros sobre o assunto. Recordo, que ele emocionava-se particularmente quando me revelava o sucedido em La Lys, sobretudo ao indignar-se, uma vez mais, por as chefias inglesas, terem impedido o seu batalhão, ali colocado tão perto, a acorrer em socorro dos compatriotas, quando estavam a ser chacinados pelo inimigo alemão.
O ódio aos ingleses explicava a razão das simpatias germanófilas durante a Segunda Guerra Mundial, embora Salazar lhe merecesse desprezo quase equivalente, pois contra ele escondera alguns dos marinheiros revoltados do «Afonso de Albuquerque» em 1936, que haviam escolhido nadar para a margem esquerda do rio em vez de se renderem aos esbirros da ditadura. Muitos anos depois, chegara a conhecer um ou dois desses efémeros foragidos, que compareciam à matança anual do porco no final da vindima e contavam as suas versões da infeliz revolta.
Não tinha ainda forma de contestar o apreço que Sidónio Pais merecia ao meu avô só por ter sido um confesso opositor ao envio de tropas lusas para a frente de batalha. Acaso tivesse vivido mais uns anos talvez o pudesse confrontar com o facto de, escusando-se a enviar para a Flandres os substitutos dos que ali já estavam cansados por duras semanas vividas nas trincheiras, esse prezado ditador ter sido culpado em parte do desenlace trágico de La Lys. Mas os historiadores de hoje são quase unânimes em reconhecer o quanto o salazarismo mistificou a derrota portuguesa na centenária batalha, dela se servindo para enaltecer as «virtudes» do regime em detrimento do suposto caos, que teria caracterizado a Primeira República. O fascismo luso nunca quis reconhecer que a participação no conflito evitou que os vencedores tivessem exigido para si as colónias há muito ambicionadas e que permitiriam ao ditador a manutenção dessa ilusão pacóvia de domínio sobre um extenso Império. Razão acrescida para escamotearem o facto de, nos quatro anos de duração da guerra, terem morrido muitos mais portugueses em Angola e Moçambique do que no cenário europeu.
Desse avô João, que a presente efeméride volta a devolver-me ao pensamento, pouco mais resta do que essa fotografia dos anos 30 em que o vejo à direita, com a mão apoiada no ombro da minha mãe ou da minha tia, quando a Quinta do Castelo Picão consubstanciava a prosápia de se afirmar como importante proprietário rural...
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