Um povo sem memória é um povo sem futuro. A frase é emblemática neste filme de Patricio Guzmán, que cria um paralelismo óbvio entre o extermínio dos ameríndios da Terra do Fogo e o assassinato dos militantes de esquerda pela ditadura de Pinochet. E, se em «Nostalgia da Luz», os veículos da memória eram os astros espreitados pelos telescópios, as pedras com inscrições dos pastores rupestres de há mil anos, ou o subsolo onde se ocultaram os ossos dos desaparecidos, em «Botão de Nácar» é a água a servir de guardiã desses dois passados distintos, mas tão semelhantes quanto à crueldade dos homicidas.
Justifica-se, assim, que, se o filme rodado em 2010 tinha imagens lindíssimas dos céus e do deserto de Atacama, o de 2015 impressiona pela beleza dos glaciares patagónios.
Há também o botão, que está inscrito no título do filme e explora-se nele a coincidência de ter havido um por cuja troca, os colonizadores do século XIX puderam levar para a corte inglesa o índio Orundellico, depois crismado de Jimmy Button, que por ali ficou como atração até dele se cansarem e o recambiarem para a procedência, e também um outro, encontrado num carril submerso, aonde estivera preso o cadáver de um prisioneiro político até o corpo se desintegrar e só lá deixar esse modesto resíduo do que tinha sido a sua camisa ou as suas calças.
Das águas também eram os vários povos fueguianos de que só restam alguns envelhecidos sobreviventes. São eles os derradeiros sacerdotes de línguas em vias de acelerada extinção. Por exemplo no idioma kawesqar, não há palavras, que designem «polícia» ou «Deus». Para que serviriam, questiona a anciã, que nos revela alguns dos vocábulos da língua utilizada durante séculos pelos antepassados.
O documentário de Guzmán é rico em informações detalhadas sobre o assassinato a sangue-frio de milhares de habitantes do sul do Chile, que constituíam incómodo a remover por quem pretendia usurpar-lhes as terras para aí criar o gado de que os mercados europeus andavam ávidos. Na periferia mais longínqua dos ambientes civilizados da Europa e da América do Norte, os colonos não mostravam escrúpulos em matar quem, por ser diferente em características fisionómicas, em valores e em religião, consideravam como sub-humanos.
Um século depois, a pretexto de converter o Chile no laboratório de uma experiência neoliberal, que viria depois a ser implementada por todo o Ocidente nas décadas seguintes, sem a vertente antipática dos recursos à tortura e à eliminação física dos adversários políticos, Pinochet foi o déspota, que a História sempre reterá como um hediondo crápula. No entanto, não há relatório do FMI ou da Comissão Europeia, que não exija aquilo que, sem oposição, impôs aos seus oprimidos cidadãos: mais privatizações, flexibilidade da economia, eliminação de direitos laborais, redução do papel do Estado.
Nas troikas ou nos comissários europeus residem muitos dos preconceitos ideológicos, que se traduziram em sangue derramado e corpos desaparecidos no Chile pós-Allende.
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