Sempre gostei muito dos filmes de Agnès Varda, que é provavelmente a atual decana do cinema francês. Daí que tenha sido com grande disponibilidade, mas me preparei para assistir à versão restaurada de «La Pointe Courte», o filme por ela rodado em Sète em 1954, quando se tornara na fotógrafa encartada do TNP de Jean Vilar e começara a frequentar os futuros realizadores da Nouvelle Vague.
Com parcos meios e recorrendo a cenários naturais, ela filmou um casal em processo de reconciliação num ambiente popular pontuado pelas atividades piscatórias e pelo festival que os entusiasmava ao fim-de-semana. Se Philippe Noiret e Sylvia Monfort eram atores de formação, com experiência nas tragédias, de que transportavam para os seus papéis o correspondente hieratismo, os demais personagens do filme eram os habitantes do bairro de barracas onde se passava quase toda a ação.
Sobre esta obra Varda adiantaria: “a minha total ignorância a respeito dos filmes mais antigos, ou até contemporâneos, permitiu-me ser ingénua e arrebatada, quando decidi dedicar-me à imagem e ao som. (...) Nessa altura, aos sábados e domingos, pus-me a escrever um projeto de filme e, às vezes, até quando esperava que as fotografias reveladas acabassem de secar.(...)
Admirava os pescadores de Sète, a sua linguagem desbragada, a energia despendida para alimentarem as famílias.(...) Era esse quotidiano o que mais me interessava, em detrimento dos então valorizados estados de alma. Sofria, igualmente, com a doença de Pierre F., que tinha um cancro na cabeça. Pai de dois filhos, estava casado com uma amiga muito próxima, que se vira na contingência de começar a trabalhar. Daí tê-la contratado como assistente. Pierre aparecia muitas vezes e atentávamo-lo animar com mentiras piedosas sobre os projetos de irmos de carro até Sète e filmá-la como forma de nos divertirmos.”
Foi assim que «La Pointe Courte» nasceu: alguém emprestou uma máquina de 16 mm a Agnès e os três partiram para a recolha de planos no bairro onde ela habitara nos anos 40. Ao percorrerem lentamente o bairro, suscitando a desconfiança das famílias de pescadores, Pierre e Suzou deram-lhe a ideia para o casal, que Noiret e Monfort viriam a interpretar. Mas Pierre já não acompanharia essas filmagens, porque não tardaria a morrer, merecendo da amiga realizadora a dedicatória, que se lê no genérico final.
Para a pose dos atores, ela não queria que exprimissem sentimentos, pois deveriam debitar os diálogos no mesmo tom em que lhes dariam a voz se os estivessem a ler. Agnès queria que se comportassem como os recitadores do teatro oriental ou como se fossem casais dos monumentos do Antigo Egipto. No caso de Sylvia Monfort também a ajudaria a semelhança com as mulheres dos quadros de Piero della Francesca.
A equipa técnica e de produção contaria com outros nomes importantes no cinema, que estaria por vir: o casal Vilardebó foi-lhe fundamental para rodar o filme por um décimo do que costumavam custar os que se rodavam em França por essa altura, e Alain Resnais fez-lhe graciosamente a montagem final.
O resultado é bastante interessante, porque fica documentado o retrato sociológico de uma França tal qual existia há mais de sessenta anos, não muito diferente do que subsistia nas nossas próprias vilas piscatórias. E os atores eram ainda tão jovens, desculpando-se a candura com que interpretam personagens cuja teatralidade pouco coincidia com a linguagem cinematográfica.
Há, porém, algo que Agnès já incluía nos seus filmes e que continuariam a ser neles presença quase obrigatória: os omnipresentes gatos!!!
Sem comentários:
Enviar um comentário