Uma das recordações que guardo de Tóquio aconteceu no final de uma tarde de sábado ou de domingo, quando o lusco-fusco, misturado ao nevoeiro da poluição, dava à baía um aspeto insólito.
Na época ainda não conhecia os romances de Murakami, mas se já os houvesse lido, concluiria tratar-se de um daqueles cenários propícios às estórias passadas no incerto território entre o sonho e a realidade e em que ninguém dá pela insólita existência de duas luas no céu.
De súbito surgiu um fogo-de-artifício silencioso, que ainda mais me aturdiu. Porque, ao contrário do que sempre me habituara em tal espetáculo, não ecoava qualquer estrépito do material pirotécnico.
País extraordinário este em que nem os foguetes se comportavam como no ocidente!
Se não foi isso que pensei na altura, o episódio contribuiu para consolidar a opinião avalizada em muitos outros episódios justificativos de pressentir algo de alienígena nas idiossincrasias nipónicas. E não tanto por viverem nessa geografia distante, porque logo ali ao lado, os chineses conseguem imitar muito do que nós, portugueses, conseguimos ser no nosso pior: chico-espertice, sujidade, avidez egoísta pelo dinheiro ou primazia das aparências em detrimento da genuinidade.
O que justifica a esdruxulidade dos japoneses, e muito particularmente nos que vivem em Tóquio, são os casulos onde dormem, porque trabalham até se consumirem em burn-outs ou em embriaguezes libertadoras ou o fascínio pelas vertentes sadomasoquistas da sexualidade tal qual no-lo revelam as sexshops ou os volumosos mangas, quase sem texto, explícitos na sua perversidade gráfica. Os suplícios a que alguns se sujeitam para que neles reparem, injetando soluções salinas no rosto para que os seus inchaços impressionem, os bicos metálicos que fazem emergir dos crânios ou as automutilações de dedos ou mãos exibem vertentes doentias do que a body art já propunha em estética mais do que equívoca.
Olhando para essa predisposição para o martírio do corpo compreendemos melhor a facilidade com que milhares de jovens aceitaram morrer como kamikazes ou um Mishima praticou o harakiri depois da sua anedótica tentativa de golpe de Estado.
Ao ver o filme da Sofia Coppola identifiquei-me plenamente com esse Bob Harris ali chegado para interpretar um anúncio a uma marca de whisky. Também ele não conseguia qualquer empatia com a cidade ou os seus habitantes. É que, apesar de ter sido excelentemente por eles tratado, quando me ofertaram apoios e prendas que não esperava, quase nunca ali encontrei com quem pudesse comunicar senão pela limitada expressividade dos gestos.
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