Um dos começos mais famosos da História da Literatura é o de «Anna Karenine» em que Tolstoi diz que todas as famílias felizes se assemelham, mas as infelizes são-no cada uma à sua maneira. Tal ilação está bem demonstrada na família de «Intimidade» (1978) com a qual Woody Allen rodou o primeiro dos seus seis filmes dramáticos, entre dois dos maiores sucessos de uma vasta filmografia com cerca de cinquenta títulos: «Annie Hall» (1977) e «Manhattan» (1979). É também o primeiro em que ele não aparece como ator.
Na época toda a crítica elogiou o filme como uma homenagem óbvia a Ingmar Bergman, embora Woody Allen tenha referido o quanto ele deve às obras do dramaturgo norte-americano Eugene O’Neill. Haverá, igualmente, quem note algo do universo de Anton Tchekov, nomeadamente nas suas peças «As Três Irmãs» e «O Tio Vânia».
Os caminhos de cruzamento com o realizador sueco também se situaram a um outro nível: o papel de Eve foi escrito para Ingrid Bergman mas a atriz, já comprometida com a «Sonata de Outono» do outro Bergman, declinou o convite vendo-se substituída por Geraldine Page. Curiosamente uma e outra seriam candidatas a melhor atriz principal nos Óscares do ano seguinte, tendo perdido o prémio para Jane Fonda, que interpretara «Regresso do Herói» sobre as consequências familiares da guerra do Vietname.
Tratava-se, pois, de uma época propícia à abordagem das disfuncionalidades dentro das famílias e Allen mostrava como não bastava ter uma qualidade de vida desafogada para se comprar a felicidade. A crise acontecera quando Arthur decidira abandonar a mulher que muito o amara, e arcara com os sustento da família enquanto ele acabara a Universidade, trocando-a por uma rival, sua verdadeira antítese.
Eve que fora uma bem sucedida decoradora de interiores fora perdendo sucessivamente os clientes e tornara-se numa esposa neurótica. O abandono do marido atirara-a para a depressão, os internamentos em hospitais psiquiátricos e, enfim, a morte.
O filme inicia-se, quando a separação já acontecera há algum tempo e Eve ainda vive a esperança de uma impossível reconciliação. Renata, a primogénita das três filhas, alimenta-lhe a ilusão, mesmo dela descrendo, vendo-se atacada por Joey, a irmã do meio, que não se chega a perceber se reage por convicção se pelo despeito de ver aquela ter o sucesso literário que ela, enquanto escritora não conseguira.
Estamos numa família onde a cultura importa e alimenta conversas sofisticadas, quase sempre entediantes na presunção de quem se parece masturbar com a invocação de referências artísticas.
Flyn, a filha mais nova, que vem do outro lado do continente, é a única a não alinhar nesse tipo de conversas, mas o facto de ter uma carreira mediana como atriz nas novelas televisivas produzidas em Hollywood, conferem-lhe uma imagem de futilidade, que retoma o tema do filme anterior: a Costa Leste, e sobretudo Nova Iorque, era o feudo da intelectualidade mais requintada, ao contrário da vulgaridade do que se produzia em Los Angeles.
Quem servirá verdadeiramente de contraponto ao esnobismo da família é Pearl, que só conhecemos na segunda metade do filme: personagem de rutura, ela é-o até na forma como se veste. As cores claras, a assumida alegria de viver, contrastam com o cinzentismo e as angústias das futuras enteadas.
Existe, pois, uma crítica explicita a uma camada social com tiques aristocráticos, que parece comprazer-se com a vocação para ser infeliz.
Tendo-se tornado num dos filmes mais mal amados do realizador, atentemos ainda assim na audácia com que Allen filma as belas paisagens invernosas sem presença humana, facilmente associáveis ao abstracionismo.
Sem comentários:
Enviar um comentário