Concluída já há alguns dias a leitura do mais recente romance de Paul Auster - «4, 3, 2, 1» - ele ainda está bem vivo na memória, não tanto pela qualidade excecional do estilo ou da intriga, mas pelo conceito de pegar em alguém e, em função das circunstâncias, fazê-lo viver experiências diferentes criando assim quatro pessoas distintas umas das outras.
Na alternativa em que o pai morrera carbonizado no incêndio da loja da família - ação em que o próprio tio colaborara para, crivado de dívidas, receber parte da indemnização do seguro! - Archie Ferguson assiste ao casamento da mãe com Gil Schneiderman.
Estava-se em 1962 e o tédio de verão tinha-o levado a uma experiência homossexual com Andy Cohen, embora não se considerasse incluído, pelo menos em definitivo, nessa opção amorosa. Auster aproveita esta personagem para abordar a indefinição da adolescência quanto ao sexo, justificando-lhe excessos, que em Archie implicarão o álcool, a prostituição, sem nunca chegar a conhecer a verdadeira satisfação amorosa.
Para clarificar as ideias aceita o convite da tia Mildred para passar umas férias na Califórnia e conhece Sidney Millbanks, a jovem amante dela, a quem confidencia as dúvidas. Quase a toma por seu espelho para quem julga lícita a confissão. Mas, inesperadamente, a experiência acaba mal, porque a tia não vivia pacificamente o seu lesbianismo e insulta-o como qualquer homofóbico o faria.
A próxima viagem leva-o a uma curta estadia em Paris, onde a mãe expõe fotografias numa galeria de Montmartre. É a oportunidade para conhecer a exuberante Vivian Schreiber, uma viúva particularmente atraente e a quem parece suscitar uma impressão positiva.
Novamente do outro lado do Atlântico procura a clarificação da ambivalência numa prostituta, Julie, tão estimulante que, ao sentir pela primeira vez a sensação de outro corpo, ejacula precocemente.
Nos dias seguintes, excitado com o prazer obtido, rouba livros nas livrarias para, vendendo-os aos alfarrabistas, conseguir dinheiro bastante para regressar tão frequentemente quanto possível ao bordel. O excesso de álcool também o penaliza, levando-o a faltar ao exame de acesso à Universidade.
A segunda chamada, que seria uma alternativa, deixa de o ser, porque acaba preso numa das repetitivas tentativas de garantir recursos mediante o roubo de livros.
O Vietname torna-se forte ameaça, não fosse o subterfúgio de, na inspeção médica, chocar o médico com a revelação da bissexualidade.
Em novembro de 1965 Ferguson volta a Paris conseguindo alojamento na mansarda do prédio onde vive Vivian Schreiber. Inepto para o exército e desistindo da universidade, dedica-se à escrita, contando na primeira pessoa como os filmes de Stan Laurel e Oliver Hardy lhe tinham salvo a vida nos meses subsequentes à morte do pai. Concluído no dia do seu 19º aniversário o romance será uma verdadeira revelação no mercado inglês onde, com a ajuda da amiga da mãe, o consegue publicar.
As novidades não ficam por aí: também Vivian acaba por se assumir lésbica, mas sem os problemas de consciência da tia Mildred. Ela até lhe proporciona a possibilidade de enveredar pela via da prostituição masculina, quase lhe metendo na cama um velho professor disposto a pagar generosamente o serviço de o sodomizar. Mas, horrorizado com a expectativa, que se abre à sua frente, Archie nem sequer consegue concluir o que o outro espera.
Já outra é a reação ao assédio de Aubrey Hull, o editor inglês, que começa por com ele se deitar num quarto do hotel George V, em Paris, quando ali se deslocara para assinarem o contrato.
Será nessa altura que vê a mãe pela última vez, ficando-lhe da despedida uma inexplicável angústia: “não queria que ela fosse. Uma semana não tinha sido tempo suficiente, mesmo que uma parte dele soubesse que ficaria melhor sem ela ali, que pouco a pouco se transformava sempre num bebé outra vez quando estava com ela, mas agora a tristeza normal de mais uma despedida mudara para uma premonição de que nunca mais a veria, de que algo lhe ia acontecer antes de terem outra oportunidade de estar juntos e de que este adeus seria o último.” (pág. 691)
O pressentimento haveria de cumprir-se de forma bem diferente do que esperava: oito meses e meio depois, em 5 de março de 1967, ainda com vinte anos acabados de fazer, foi atropelado mortalmente em Londres na mesma esquina onde também vi Amy Winehouse, um ou dois anos antes de desaparecer.
Archie esquecera-se que, na Inglaterra, o sentido em que os carros evoluíam era o contrário do que sempre considerara como o habitual. Mas não andara ele, distraidamente, a percorrer caminhos opostos aos que lhe ditaria a personalidade?
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