Na semana passada, com «ABC do Amor» tivemos um mero aperitivo do que viria a ser o cinema de Woody Allen. Os “pratos de substância” vêm a seguir e logo com o título que, em 1977, lhe garantiu os Óscares de melhor filme, melhor realizador, melhor argumento e melhor atriz (Diane Keaton).
Embora não corresponda ao que penso, há quem considere este o melhor filme do realizador, tão divertido e inteligente se revela, cena a cena. Nesse sentido, mais do que «Love and Death», que realizara em 1975, este é definitivamente o filme de viragem para a grande fase criativa seguinte, aquela em que cada novo título era aguardado com a expetativa de se aferir até onde ele conseguiria exceder-se na abordagem dos seus temas obsessivos: o amor, o sexo, a religião e a morte.. Alguns deles constituirão a programação deste ciclo nas três próximas semanas.
«Annie Hall» começa com Alvy Singer a interpelar-nos como se estivéssemos a assistir ao vivo a uma das suas sessões de stand by comedy. Se em «Rosa Púrpura do Cairo» os atores sairiam da tela para interagirem com a espectadora dos seus filmes, sentada na plateia, ele antecipa aqui esse artifício anulando a distância entre a bidimensionalidade do ecrã e a nossa tridimensional existência à sua frente.
Ele começa por contar uma velha piada sobre duas idosas, que maldizem a comida do hotel da montanha de Catskill, onde estão hospedadas.
«A comida aqui é uma porcaria», diz uma.
«É verdade», diz a outra. «E as porções são tão pequenas!.
O diálogo serve para Alvy nos dar a sua interpretação da vida: cheia de solidão, miséria, infelicidade e terminando demasiado depressa.
Ficamos então a saber que ele e Annie tinham acabado de se separar. Mas, porque a sucessão cronológica já conheceu melhores dias, começamos por vê-los quando a relação amorosa parecia inexpugnável. Só lá para meio do filme iremos saber como se tinham conhecido, ele um judeu de origens baixas, ela uma provinciana, nascida em família burguesa e muito conservadora. Nas clivagens sociais, religiosas e culturais tinham tudo para se desentenderem, tanto mais que ele escusa-se a abdicar da vida intelectual de Nova Iorque, enquanto ela aspira a radicar-se na bem mais fútil Los Angeles. Depois do fascínio inicial depressa concluem que os sonhos de um nunca coincidem com os desejos do outro.
Embora «Annie Hall» tenha surgido do desejo de Woody Allen em declarar o seu amor a Diane Keaton em forma de filme (como Godard fizera com Anna Karina) a conclusão só pode ser esta: os homens e as mulheres não são feitos para viverem juntos, porque nunca se irão entender.
Quando a crise no casal começa a fazer-se sentir, Alvy e Annie recorrerão ao psicanalista, mas até aí as mesmas respostas têm sentidos contrários: ele queixa-se de serem escassas as três vezes que têm sexo por semana, enquanto ela as considera demasiadas.
Alvy fundamenta o estereotipo, que Woody Allen já vinha criando nos filmes anteriores e se acentuaria noutros títulos seguintes: ele é o homem sempre inseguro, cheio de dúvidas quanto às suas qualidades, quer na profissão (como ator intimida-se com subir ao palco após outro comediante por se julgar incapaz de manter a audiência a rir com a sua prestação), quer no amor. Por isso não enjeita a oportunidade de importunar com quem se cruza na rua, questionando homens e mulheres sobre se são felizes ou se têm problemas de relacionamento.
Estamos, pois, perante uma autópsia do casal, interpretada por aquele que terá sido o melhor exemplo do que isso significava nos anos 70. Duas ou três décadas antes esse papel tinha cabido a Katharine Hepburn e a Spencer Tracy.
Para além de ter influenciado importantes séries televisivas da década seguinte («Friends», Seinfeld»), «Annie Hall» tem o fascínio de nele surgirem, nalguns casos em papéis quase impercetíveis, nomes relevantes do cinema, da música ou até da sociologia de então: Sigourney Weaver, Jeff Goldblum, Shelley Duvall, Carol Kane, Christopher Walken, Paul Simon ou Marshall McLuhan.
Há também a conhecida cinefilia do autor: quando marcam encontro para um cinema, Alvy e Annie planeiam ver «Persona» de Ingmar Bergman. Ora o realizador sueco é aqui homenageado de outra forma mais interessante: recorde-se por isso mesmo «Morangos Silvestres», o filme de 1957 com Victor Sjöstrom, em que um velho professor recordava cenas da juventude, enquanto viajava de carro e, no seu estado de semiconsciência, era o seu corpo idoso que voltava a dialogar com quem tinha amado ou desamado, quando era jovem e era nessa imagem passada que lhe surgiam esses personagens. Aqui Alvy Singer, já quarentão, volta a sentar-se na sua cadeira da escola primária, interpelando os miúdos, que eram então seus colegas e discutindo com o professor. Ou passeando com Annie e um amigo junto à famosa roda de Coney Island recorda ali a família, quando era miúdo e tenta em vão dialogar com os pais tal qual eram na sua infância.
Mas as homenagens não se ficam por Bergman ou por Fellini e Ophuls, que são explicitamente citados nalgumas outras cenas do filme. Há também a que dedica ao ator do realizador sueco, esse Victor Sjostrom, que realizara em 1921 um filme, «O Comboio Fantasma», em que saía do corpo caído no chão o espírito de quem o alojava. A célebre cena de cama, em que o espírito de Annie sai da cama e se senta na cadeira enquanto vê Alvie a prosseguir a cópula é uma referência intencional àquele velho mestre do cinema escandinavo.
Quarenta anos depois o filme de Woody Allen continua muito atual: o Amor continua a ser um desafio imenso e as possibilidades de acabarem mal são bem maiores do que as de sentido contrário.
Sem comentários:
Enviar um comentário