terça-feira, março 21, 2017

(DL) Os paradoxos de um cientista e do seu amigo poeta

Um dos paradoxos, que sempre associei a Rómulo de Carvalho, é a de ter tido a noção das injustiças do regime em que quase sempre viveu, mas só no duplo Gedeão, lhe ter manifestado desacordo.
É verdade que foi admirável pedagogo, capaz de motivar gerações de alunos para as ciências da natureza. Muitos deles viriam, por isso mesmo, a tornar-se investigadores dos mistérios por ele sugeridos em aulas nunca mais olvidadas. Mas o homem reconheceu agrado na implantação do fascismo - para acabar com os “excessos” propiciados pelas liberdades sem freios -, provocou quem o ouvia com a novidade de ter em Américo Thomaz um admirador dos seus versos e apressou-se a pedir a reforma logo após a revolução de abril por não suportar a turbamulta dos corredores dos liceus. Pouco antes de morrer confessava nunca ter votado na vida, apesar da canónica importância de tal manifestação cívica. Às liberdades preferia o rigor austero, que sempre pautara o seu comportamento. Até por não ter qualquer confiança na bondade humana: em ditadura ou em democracia, associava todos os comportamentos aos interesses egoístas, à vontade de alcançar a satisfação das aspirações sem cuidar de quanto resultariam em prejuízo alheio.
No entanto basta ler «A Lágrima de Preta» para constatar o quanto o racismo lhe era absurdo. Ou como os versos da «Pedra Filosofal», escritos em 1956, viriam a ajustar-se a hino antifascista uma dúzia de anos depois.
A chave para entender a sua personalidade está no «Poema para Galileu»: a exemplo do cientista da época barroca de pouco lhe importavam as crenças alheias por muito que elas comportassem a magnificência arrogante das formas exuberantes, porque o conteúdo sabia ele bem qual era. Tal como anotara no poema, “estoicamente, mansamente”, foi passando pela vida sabendo que, mesmo julgando-se parados no espaço e, porventura, no tempo, os políticos, da ditaduras ou da democracias, viajam no espaço “à razão de trinta quilómetros por segundo”. Mais do que os homens nos estultos modelos criados para se organizarem, todos obedecem às leis da Física.
E é aqui que Rómulo de Carvalho justifica essa inicial paradoxalidade ao não ter entendido como o comportamento dos regimes perante a Ciência define-lhes a natureza e, por isso mesmo, justifica que a eles reajamos. Entre os que cerceiam as liberdades e negam as evidências dos sinais da natureza - como sucede com Trump na rejeição do aquecimento global e da urgência em travá-lo - e quantos aliam o anseio por sociedades menos individualistas e mais respeitadoras dos humores do planeta, há que fazer opções. Votar, manifestar, contrariar ou apoiar consoante o exigem as distopias ou as utopias, que só as Ciências permitem conjeturar. Legitima-se a relevância dada a António Gedeão em detrimento a quem o criou e o teve como dileto amigo.

Sem comentários: