Veneza vive do encanto dos palácios cujas paredes foram cicatrizando as marcas deixadas pelo tal arquiteto de que falava Marguerite Yourcenar, assentes em estacas de madeira apodrecidas.
Olhamo-los e há neles um sentido de efemeridade, que desafia a nossa imaginação. Por quanto mais tempo nos serão acessíveis as caminhadas pelos passeios, que ladeiam os canais, sempre capazes de surpreender quando se chega a uma esquina e não se adivinha o que atrás dela se esconde. Uma igreja barroca, uma pequena praça com cadeiras onde possamos descansar os pés, os ciprestes da ilha de San Michele?
Quando chega a invernia outros cuidados se têm de acautelar, que a acqua alta traz notícias do siroco, a soprar do sul para subir as ondas do Adriático.
É a patine das memórias ali acumuladas, a trazer multidões de turistas que, uma vez, quando arrisquei o percurso entre a Praça de São Marcos e o Rialto, me fizeram crer na breve suspensão dos corpos como se, colados, formassem um todo único a deslocar-se às ordens dos guias turísticos e das suas multicolores bandeirinhas.
Por remeter a cada instante para o passado é obscena a passagem regular dos gigantescos paquetes, que desafiam as alturas do Campanile quanto ao melhor local para espreitar toda a laguna e, olhando para norte, vislumbrar os contrafortes alpinos.
Os «Costas», os «Sovereigns» ou os «Voyagers», na condição de modernos arranha-céus, constituem uma grotesca aberração na paisagem urbana, e ameaçam, nos esforços acrescidos das águas por si movimentadas, os frágeis caboucos onde o espírito do lugar tão brevemente assenta.
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