1. Quase sem darmos por isso, eis-nos chegados ao tempo em que as memórias se confundem e a vida parece escorregar por um plano inclinado.
Há mãos desconhecidas, que nos tocam, porque nos lavam ou nos chegam a comida à boca, mas às vezes sentimos a necessidade de que nos façam sentir outra coisa, nos devolvam à magia do desejo consumado num orgasmo sem fim. Como aconteceu num passado de que ficou a doce recordação de um instante único.
Os filhos, quando vêm, estão de passagem, sempre acelerados para outros compromissos onde não temos lugar. E os amigos de outros tempos, ou morreram, ou arrastam-se, também eles caquéticos, por estes corredores cada vez mais difíceis de atravessar.
Até mesmo o Salus, esse Salustiano, que um dia os polícias trouxeram ao meu tribunal para que o julgasse a pretexto de fazer revoluções! Também ele anda por aí a arrastar-se já esquecido das suas efémeras utopias.
Uma médica apareceu por aqui a dizer que tinha de me cortar uma perna, mas não quis acreditar no que disse. Gangrena? Quero lá saber. Da perna e de tudo o resto.
O que sei é estar lá em baixo um rio. E que nele me irei definitivamente banhar…
2. O texto anterior corresponde a uma das muitas sinopses possíveis da peça criada por Miguel Jesus com base em textos de Vergílio Ferreira.
Prevista uma curta série de espetáculos, que se concluiria no próximo domingo, a afluência de muito público à quinta de Vale dos Barris justificou a decisão de a manter em cena até dia 24 de maio. E o meu conselho é este: não percam esta peça, que trata da inexorabilidade do tempo, das memórias que se desvanecem e da inevitável queda para a morte. Porque, apesar de cuidar de assuntos sérios, consegue fazer rir e pensar, conjugando as premissas fundamentais, que um espetáculo deve contemplar: surpreender, impressionar, inquietar, encantar.
Porque para além do excelente texto, que saiu da lavra de Miguel Jesus, conta-se com a cenografia imaginativa de Rui Francisco, com o eficaz desenho de luz de Guilherme Noronha e João Cachulo, com a música empolgante de Jorge Salgueiro e, sobretudo, com as interpretações superlativas de dois excelentes atores - Rui M. Silva e Ana Lúcia Palminha.
Depois de, desde o início do ano, ter andado de desencanto em desencanto pelos vários palcos lisboetas, a ver peças rapidamente descartáveis da lembrança, eis que o espaço do Bando em Palmela volta a dar-nos o ensejo de uma experiência memorável.
3. Para além da magia decorrente do próprio espetáculo, o facto de ser representado ao ar livre permitiu-nos complementá-lo com o fascinante assombramento das estrelas no céu e com a banda sonora das rãs a coaxarem ruidosamente no lago…
Quem é que pensa, que são cada vez mais difíceis as experiências ímpares na vertigem dos nossos dias? Bastará arriscar cem minutos a ver esta peça para depressa concluir que tal ideia não faz sentido nenhum!
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