No programa «Philosophie» desta semana (canal Arte aos domingos), Raphaël Enthoven convidou Philippe Cabestan para procurar respostas a algumas questões: como converter as nossas atitudes que inautênticas num verdadeiro percurso de autenticidade? Será necessário sentir-se estrangeiro para melhor se sentir a si mesmo?
Philippe Cabestan é um reconhecido sartriano, que publicou, entre outros títulos, «Sartre - Désir et Liberté», «Dictionnaire de Sartre» e «Daseinsanalyse».
E é precisamente por «Les Mots», que a conversa se inicia, em função de um trecho em que Sartre evoca o avô numa altura em que descobrira a fotografia e ganhara o gosto de se captar sob o aspeto do seu idolatrado Victor Hugo. Ora, como exemplo de inautenticidade não poderia ser escolhido melhor exemplo. Porque rejeitando a sua personalidade, o avó de Jean Paul adora vestir a pose e o aspeto do autor de «Os Miseráveis».
Sartre interpreta essa evocação como a demonstração de todos nós assumirmos papéis, que não coincidem propriamente com quem somos. Há sempre uma vontade de, em sociedade, nos colocarmos em protagonistas do nosso próprio espetáculo.
No caso das fotografias das primeiras décadas do século XX essa inautenticidade era quase obrigatória pela própria existência de um fotógrafo, que convidava o fotografado a colocar-se em pose. Ora, dar-se a esse espetáculo significava adotar a postura de uma estátua…
Sartre considerava que cada um de nós possui a vontade profunda de ser um outro, de petrificar-se a ponto de suscitar o olhar, a atenção do Outro.
A própria sociedade não pode dispensar a existência desses desempenhos: seja o advogado, o magistrado, o empregado do café ou o professor de filosofia, todos eles sentem a necessidade de cumprirem papéis conformes com os preceitos estabelecidos para tais profissões. Por isso, prestando atenção ao criado do «La Coupole», que ia bamboleando a mão onde transportava o tabuleiro, pedia um «expresso» em vez de um café ou com o pano pendurado no ombro, conclui que ele fazia mais do que ser o empregado do café: ele interpretava o papel do empregado do café. Ele assumia o papel como se nele se coisificasse…
Mersault, o protagonista de «O Estrangeiro» de Albert Camus, torna pertinente a questão de saber até que ponto se justifica a solidão da diferença face a todos quantos nos rodeiam, para melhor nos sentirmos a nós próprios. A inautenticidade, segundo Heidegger, tem a ver com a imersão num mundo impessoal, algo que é recusado pelo homem que será condenado por não ter chorado a morte da mãe.
Mersault sente essa distância enigmática face a tudo quanto o rodeia, escusando-se a cumprir as regras de um microcosmos, que o desejaria integrar, digerir. Ele é aquele que, quando deseja, deseja mesmo; quando detesta, não se priva de o fazer. Vive a verdade de quem é.
No polo contrário ao de Mersault temos os grupos de turistas, que se aglomeram em torno de um guia para descobrirem um espaço desconhecido. E justifica-se a questão: a integração no grupo, o turismo não será um exemplo lapidar da escola da inautenticidade?
Estimulados pela indústria do turismo que os convence da importância de viajarem, obedecem sempre ao que lhes é proposto: em Veneza visitam o palácio dos Doges ou a catedral, sobem ao Campanile e espreitam o Gran Canale a partir do Rialto e pouco se aventuram para lá dessas atrações mais conhecidas. Quando a diferença, a autenticidade, seria partir à descoberta dos meandros mais periféricos em relação à praça de São Marcos.
Os turistas, que se dissolvem no grupo, respondendo a um imperativo anónimo, exemplificam bem o conceito de impessoalidade, que Heidegger definia a respeito da perda da autenticidade como forma de melhor se fazer aceitar pelo grupo.
Noutra perspetiva Vladimir Jankelevich dizia que o inconformismo consegue ser o mais hipócrita dos conformismos e o mais frequente. Nas imagens de jovens, que participam num festival gótico, onde a imagem não convencional é a regra não se constatará um conformismo do inconformismo? O que querem transmitir a outrem os jovens, que assim se disfarçam?
O quadro de Van Gogh tendo por tema um par de sapatos de camponês consegue dar um retrato mais autêntico de quem vivia da agricultura no seu tempo do que as roupas de fantasia dos jovens góticos. Onde no pintor holandês há implícita a ideia de alguém conforme com a sua identidade, temos em contraponto a interpretação de um papel social nos mascarados do Festival de Leipzig.
Num derradeiro exemplo Enthoven e Cabestan questionam a autenticidade dos norte-coreanos que choraram copiosamente a morte do seu líder. É a participação numa comédia ou lágrimas autênticas de quem admirava sinceramente o defunto? Quem poderá arriscar uma certeza a tal respeito, muito embora essas pessoas pareçam sinceramente afetadas por tal morte?
É que a morte está no centro da dualidade entre a autenticidade e a inautenticidade, porque todos sendo mortais, é difícil não ser por ela tocado no que temos de mais profundo.
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