Há um ano atrás
tivemos a oportunidade de ver «Menos Emergências» no Teatro Meridional que,
como de costume, servia de anfitrião às propostas de outros grupos. E ficámos
tão rendidos com o trabalho em causa, encenado por Ricardo Neves-Neves para o
Teatro do Elétrico, que deixámos expresso esse entusiasmo num texto laudatório
então publicado no blogue «Ventos Semeados».
Agora voltámos a
ter a possibilidade de o rever no Teatro da Trindade, onde ele permanecerá até
ao fim do mês. E fica aqui o conselho: vale mesmo a pena vê-lo ou revê-lo pela
capacidade, que tem em nos desconcertar, primeiro e imprescindível passo para
pormos em causa todas as certezas com que nos querem formatar.
Aqui fica um extrato do texto inicialmente publicado no «Ventos Semeados» a 12 de maio de
2014:
(…) As três peças de Martin
Crisp aqui mostradas dão-nos a classe burguesa no seu esplendor, a comentar a
vida alheia através do recurso abundante aos lugares comuns. Mas o que
pareceria ser uma sucessão de diálogos de chacha, depressa se converte numa
inesperada sucessão de revelações com o seu quê de surreais, mas em que se
mantém as entoações com que são proferidas. Há algo da provocação Dada no que
aqui vemos interpretado.
Temos pois comentários sobre
um casal desavindo, em que a mulher depressa se terá arrependido do compromisso
conjugal e decide sair de casa, mas acaba por não o fazer, porque - questionam
os que dialogam sobre ela -, por que haveria ela de o fazer?
os que dialogam sobre ela -, por que haveria ela de o fazer?
Há depois a história do
psicopata, que assassina um numeroso rol de vítimas, algumas das quais
crianças, mas que nada no seu passado poderia explicar o seu gesto. Porque tivera uma educação excelente, uma vida excelente, uma família excelente, e assim por diante.
crianças, mas que nada no seu passado poderia explicar o seu gesto. Porque tivera uma educação excelente, uma vida excelente, uma família excelente, e assim por diante.
E há a história final, que
quase parece talhada para o nosso presente. Onde se diz convictamente que “as
coisas estão a melhorar”, como se se precisasse de dizê-lo para acreditá-lo. E
logo temos quem corrobora e exemplifica: “a luz está mais brilhante”. E temos
então a história de um casal que tem um iate, e navega nele até ao oceano,
quase se chegando à orla. E lá temos os personagens a questionarem-se sobre o
que haverá para lá dela, nessa orla muito parecida com a «saída limpa» da
troika. Nada, concluem!
Estas histórias, aparentemente
anódinas, dizem muito mais sobre todos nós do que a ligeireza de tom com que
são interpretadas, pressupõe. É que somos muito facilmente embalados pela musicalidade desses diálogos feitos tantas vezes de clichés, mas que nos levam
até revelações sobre o que ali se passa à nossa frente, que nos põe atónitos a
perguntar se ouvimos bem quanto foi dito: então o Bobby ouve vozes na cabeça?
Então foram quatro as crianças assassinadas pelo psicopata? Então o Bobby (será
o mesmo?) não atende o telefonema dos pais, porque só se movimenta
arrastando-se escada acima?
Aos dez atores em cena
acrescenta-se a orquestra e um coro com dezenas de vozes, que transformam o
espetáculo numa espécie de superprodução feita decerto com muito empenho por
gente jovem, que não baixa os braços e continua a dar luta às contingências criadas por um poder inculto e incompetente. (…)
gente jovem, que não baixa os braços e continua a dar luta às contingências criadas por um poder inculto e incompetente. (…)
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