quinta-feira, novembro 26, 2020

(EdH) E Deus deixou de ver os Homens como submissos pecadores

 


Até o ateu mais empedernido, como é o meu caso, tem de reconhecer a majestosidade da Basílica de São Pedro, quando se entra na Praça do mesmo nome em Roma. Monumento imponente da Renascença continua a ser uma das maiores igrejas dos nossos dias remetendo, através das colunas e arcadas, para os grandes templos da Antiguidade. E, no entanto, recuando apenas algumas décadas, antes de se iniciar s sua construção em 1506, ela era liminarmente irrealizável, por não existirem os conhecimentos matemáticos, físicos e de mecânica necessários para a tornarem possível. Nem tão pouco quem a soubesse planear e dirigir. Foi o surgimento de uma geração de génios, muitos deles dotados de talentos inventivos e artísticos, que saberiam traduzir multidisplinarmente num conjunto memorável de grandes obras de referência deste período, entre as quais a Basílica em causa.

Leonardo da Vinci e Miguel Ângelo foram, porventura, os mais superlativos na capacidade de recolherem saberes e os traduzirem inovadoramente. E, no caso da Basílica de São Pedro é o segundo quem nela imprimirá mais profundamente a sua marca, aliando as competências de mestre-de-obras, de arquiteto, de escultor e pintor. Sem jamais deixar de manter a sua influência como erudito e polemista, como arquétipo do homem moderno do sue tempo. Mas antes já criara o seu David, uma das esculturas mais célebres da História da Arte. Numa altura em que a arte e a cultura, o saber e a tecnologia deram um enorme salto em frente foram homens da sua estatura que corporizaram as mudanças prodigiosas então em curso.

Em 1501, quando pegou num bloco com 12 toneladas para, durante três anos, esculpir a sua obra emblemática com cinco metros de altura, Miguel Ângelo rompeu definitivamente com a representação do homem tal qual o tratara a arte medieval. Enquanto até então o homem era submisso a Deus, porque nunca se conseguia dissociar da sua condição de pecador, Miguel Ângelo e os outros artistas do Renascimento fazem-no seu igual. Porque se o Homem fora uma criação divina não poderia, doravante, ser visto senão como igual ao seu criador.

Não se tratava ainda de uma mudança de perspetiva quanto à questão da criação do Homem ou de Deus, que Baruch Espinosa viria a propor no século seguinte, mas acelerava-se para aquilo que hoje é crescente evidência para muitos: que o sentimento religioso é uma criação humana e, como tal, passível de ser devidamente minimizado pelo primado científico, que não reconhece absurdas divindades por não se sujeitarem aos mais elementares critérios quanto à demonstração não da sua existência.

Quando, nove anos depois do David, Miguel Ângelo criou a estátua de Moisés para figurar no túmulo do Papa Júlio II, Miguel Ângelo deu-lhe a aparência dos deuses da Antiguidade através das barbas imponentes. Reconhecia, assim, o quanto aprendera com os artistas gregos e romanos, mas também demonstrava o quanto esse saber contribuíra para criar algo de novo, algo que marcaria doravante a grande revolução artística e científica, que caracterizaria esse século XVI. 

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