Pintar como um porco, crónica do Afonso Cruz no Jornal de Letras, suscita o sorriso no primeiro parágrafo por lembrar como os filhos, um de oito e outro de cinco anos, terão ficado surpreendidos com o prémio de ilustração atribuído ao progenitor, porque não só desenhava mal, como pintava fora dos riscos. E essa lembrança serve-lhe de estímulo para uma reflexão, que convoca Munch e Wentzel para contrapor algumas ideias sobre a verdade na obra de arte, associando-lhes na retaguarda os contributos de Van Gogh e Jules Renard, ou ainda de Pessoa através de dois dos seus heterónimos.
Quando se viu perante «A Menina Doente», o pintor naturalista norueguês, terá dito que Munch deveria ter vergonha por pintar como um porco. E essa é exemplo curioso de uma discussão, que perdurou durante décadas, iniciando-se no final do século XIX e prolongando-se até hoje, porque continua na ordem do dia a definição do que é ou não arte. Por haver quem se escusa a representar a realidade tal qual a quereriam ver os que se satisfariam com a sua aparência. Picasso ou Klee foram dois dos muitos artistas etiquetados pelos nazis como criadores de arte degenerada. Claro que estes, tal como os émulos, que lhes imitaram a atitude depreciativa antes ou depois da Segunda Guerra, nunca poderiam compreender o que intuíra o pintor dos girassóis ao reconhecer a necessidade de pôr mentiras na tela para melhor expressar uma verdade profunda, muito para além do que a realidade pareceria.
A questão é a de não se poder dissociar a obra de quem a fez, mas também de quem a vê. E quer um, quer outro, possuem sensibilidades diferentes, que os fazem criar ou observar com as respetivas subjetividades. Não há uma única forma de ver «Guernica». Cada um de nós, ao apreciá-la, investe no ato toda uma abissal profundidade de conhecimentos, sensações e ansiedades vivenciados desde que nasceu até esse momento. E, daí que a obra suscite tantas interpretações quantos se coloquem diante dela. Porque não deixamos de ser únicos.
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