Se tiver de programar um ciclo de cinema que tenha a música erudita como tema, este é daqueles títulos incontornáveis para em tal contexto ser considerado. Porque tem todas as características de um excelente filme: uma história bem concebida pelo escritor Pascal Quignard, que lhe deu a forma de romance, antes de o ver adaptado ao cinema por Alain Corneau; interpretações irrepreensíveis dos Dépardieu ou de Anne Brochet, e, sobretudo de Jean-Pierre Marielle, aqui no melhor desempenho, que lhe vi no cinema; e, como se faltassem razões para lhe garantir a excelência, o realizador foi buscar Jordi Savall para cuidar da direção musical e interpretação dos temas aqui abundantemente executados e, nalguns dos quais, podemos ouvir a belíssima voz da saudosa Montserrat Figueras.
A história é ambientada na França do século XVII durante o reinado de Luís XIV, quando o mestre Sainte-Colombe critica violentamente o seu antigo aluno, Marin Marais, por desperdiçar o talento exibindo-o, frivolamente, na Corte, e sem adivinhar que lhe namora a filha mais velha às escondidas.
Nas cenas iniciais encontramos o célebre violista, já envelhecido e idolatrado pelos alunos, a recordar o início da aprendizagem da viola de gamba com o mentor.
Acabara de ser expulso do coro paroquial de Saint Germain l’Auxerrois, porque a voz lhe começara a mudar, restando-lhe duas possibilidades: ou ser sapateiro como o pai, ou dedicar-se à viola de gamba para cujo mister parecia talhado.
Não fora fácil fazer-se aceitar por quem era conhecido pela teimosia em viver retirado do convívio com a Corte, mas inigualável no virtuosismo e na inovação com que cuidava da interpretação da arte musical, mormente através da inserção de uma sétima corda no instrumento para a execução de notas mais baixas.
Ao ouvi-lo interpretar uma Folia, Colombe apressara-se a recusá-lo como aluno: “Você faz música, mas não é um músico”. Mas, quando lhe ouve uma peça da sua autoria, o mestre aceita o candidato a discípulo. Por pouco tempo, pois logo o afasta para se dedicar exclusivamente a tocar para a defunta esposa, que crê vir visitá-lo à pequena cabana, onde se encerra horas a fio. Madeleine, a filha primogénita com quem Marais iniciara namoro, esconde-se com ele debaixo dos pilares, que sustentam a pequena construção, permitindo-lhe ouvir as belas composições que o pai ali toca ininterruptamente sem jamais se preocupar em passa-las para partitura.
Porque tem talento para compor, e o que ouve ao mestre o influencia positivamente, Marin Marais ganha progressivo renome na corte de Versalhes. E, fascinado por outras possibilidades amorosas, vai rareando progressivamente nas visitas à namorada, que acaba por dele abortar um filho. Ficando acamada, a rapariga vai morrendo pouco a pouco de anorexia, penalizada pelo egoísmo do antigo amante, entretanto promovido à direção da orquestra de câmara do rei.
Quando, chamado por Sainte-Colombe, Marais visita a moribunda, toca-lhe em jeito de definitiva despedida, a composição que para ela criara no passado. Nos anos seguintes, apesar do seu sucesso na corte, ele esconder-se-á frequentemente debaixo da cabana para acompanhar as criações do que continua a considerar seu mestre. Um dia, deixa-se por ele descobrir, e Sainte-Colombe acede, enfim, a dar-lhe a primeira lição, ensinando-lhe que a música não serve para Deus, nem para conquistar a glória, mas tão só para consolo dos que terão perdido o encanto das palavras.
Anos depois, quando é surpreendentemente visitado por Sainte-Colombe, Marais tem o consolo de lhe ouvir o orgulho de o ter tido como seu aluno. Mas todas as manhãs do mundo não têm regresso possível.
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