Na mais recente edição do «Jornal de Letras», quase por inteiro dedicado à participação portuguesa na Feira do Livro de Guadalajara, surge um artigo de Miguel Real («Pessoa e Saramago: a transgressão estética») no qual o escritor e filósofo equipara os dois maiores vultos literários portugueses do século XX na capacidade de romperem com os cânones até então existentes. Se Pessoa cria a singularidade multidentitária, que ficaria definida como heteronímica, Saramago provocou a estimulante perplexidade dos leitores ao lerem-lhe os dois romances - «Levantado do Chão» e «Memorial do Convento» - que o colocaram como um caso definitivamente à parte entre os muitos e bons autores do seu tempo.
Vale a pena sublinhar a importância da parte final do texto de Miguel Real, que fundamenta a comparação entre os dois escritores: “Saramago impôs à literatura mundial uma nova e revolucionária concepção geral de romance, subvertendo o estatuto do narrador. Como Pessoa, por via da heteronímia, “foi tudo de todas as maneiras”, assim o narrador de Saramago é “tudo de todas as maneiras”: histórico e majestático, auto e heterodiegético, distanciado e participante, individual e colectivo, omnisciente e limitado, ora vocalizado na terceira pessoal do singular, ora na primeira do plural, ausente e participante, descritivo e empenhado, reflexivo e expositivo, memorialístico e actual, de estatuto tão importante quanto o das personagens. De certo modo, o narrador identifica-se com uma espécie de cruzamento entre vox populi, vox Dei e consciência moral individual (o “daimon” socrático), o que lhe permite tanto descrever os acontecimentos como julgá-los, como, ainda, inscrevê-lo numa ordem histórica em função de um futuro prenunciado de igualdade entre os homens. Narrador tão complexo aponta para um certo barroquismo de linguagem.”
E mais nada fica por acrescentar...
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