sábado, dezembro 22, 2018

(DL) Chegar a lado nenhum julgando estar em vários ao mesmo tempo


Em recente entrevista Dulce Maria Cardoso alerta para as coisas terríveis, que se escondem sob o manto da normalidade. Aquela que anestesia e inibe o sentido crítico. A que acomoda e tolhe a vontade de agir.
Sendo este um mundo em tão acelerada mudança, conviria compreendê-lo para assegurar bem melhor adaptação. O que não é o caso: crescem os medos e as ansiedades, instala-se a sensação de caos, procuram-se líderes providenciais de serôdias palavras e incredíveis soluções. A História parece retroceder, abrindo antigas covas para delas resgatar assustadores mortos-vivos.
Os telemóveis reivindicam exclusiva atenção, e não teria sido possível encontrar melhor areal onde esconder a cabeça e esquecer o que a seguir virá. E essa cedência à normalidade é característica da mulher mediana, nem muito bela, nem particularmente inteligente, que dá título ao romance mais recente da escritora. Até que...
Dulce Maria Cardoso não consegue perceber como Eliete surgiu ao disponibilizar-se perante a página em branco como que pedindo-lhe para que a desvendasse e entendesse. Porque aprofundando-lhe a personalidade, ou acompanhando-lhe as vicissitudes do quotidiano, procurou respostas para as muitas perguntas do momento.
Será ela a servir de alter ego à autora, que a convoca para o jogo infantil de contar estórias a si mesma sobre tanta estranheza. De repente esquece-se tudo quanto se aprendeu com o Holocausto ou a Revolução de Abril, e é como se a demência da avó replicasse a tendência dos contemporâneos para se desnortearem e se alhearem do que lhes deveria guiar os passos de cada dia. Por essa anciã até se justifica a reabertura do que a História registara como indubitável, mas merece ser esclarecido por acentuar ainda mais a hipocrisia dos que se declaravam virtuosos e, afinal, escondiam vícios privados.
É a urgente reinvenção do sentido de coletivo, que está na ordem do dia, contrariando a ilusão dos que, usando e abusando de gadgets acreditam chegar a vários lados ao mesmo tempo sem compreenderem que não chegam a lado nenhum.

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