sábado, novembro 05, 2016

(DIM) O esquecimento quase como maldição

Ao pensar nas experiências no Peru a primeira imagem, que me vem à memória, é a de um começo de noite em Lima e um grande aparato de bombeiros a combaterem um incêndio com chamas vivas num prédio com alguns andares. E, no entanto, apesar dessa ocorrência, mesmo ali ao lado, numa garagem de um piso térreo com aberturas para se ver o que se passava no exterior, centenas de pares continuavam a dançar indiferentes a tudo o que não fosse o seu prazer de bailarem.
Estranho Peru aquele, onde o Sendero Luminoso acendia gigantescos slogans políticos com as fogueiras, que ateava nas encostas das montanhas circundantes à capital. Ou onde havia gente reunida em torno de quem declamava poemas numa das principais praças, ao lado dos que faziam números circenses ou vendiam banha-da-cobra.
Foram essas memórias, que «El Olvido», o filme de Heddy Honigmann rodado em 2008, reavivaram. O esquecimento não era só o meu, que retivera tais reminiscências nos esconsos da mente, mas também remete para o dos sucessivos presidentes, acusado pelo barman da primeira cena do filme como exemplos de maus cocktails, inerentes à História de um país onde os eleitos o são em atos semi-democráticos, os ditadores vão surgindo com invulgar frequência a perturbarem a ordem constitucional, e quer uns, quer outros, comungam a mesma responsabilidade por más políticas e atos de corrupção.
Por isso sucedem-se dezenas de personagens a viverem com imensa dificuldade, numa pobreza quase extrema, mas sempre procurando olhar a câmara com grande dignidade. Porque o filme de Heddy é, sobretudo, uma sucessão de rostos profundamente tristes, dos quais não é fácil conseguir que evoquem boas recordações ou emitam os sonhos, que têm.
O filme acompanha jovens, que ganham a vida em números de malabarismo nas passagens para peões face a automóveis momentaneamente parados pelos semáforos ou em horas intermináveis a oferecerem os serviços de engraxadores e a quem se senta nas praças. Muitas vezes vendo passar os manifestantes das greves gerais, que lutam por políticas mais decentes para os explorados e desvalidos.
Nas visitas a cafés, a bares e a restaurantes finos, constata-se a incongruência de uma enorme desigualdade social, porque há quem manifestamente nem sequer faça uma ideia das necessidades por que passam muitos dos seus compatriotas. Heddy acompanha alguns dos empregados, que servem essa elite - muitas vezes os que foram, são ou serão presidentes - até às suas modestas casas caóticas e por rebocar para constatar-lhes como, criados de ricos, eles sobrevivem em condições quase tão miseráveis como os vizinhos dos seus bairros pobres. Esses bairros nas mesmas encostas onde se adivinhava, nesses idos anos 80 quando ali estive, a presença do movimento maoísta.
Num café, que os antigos donos deixaram em testamento aos empregados quando morreram, há um cliente que diz para a câmara qual é o problema do Perú: apesar de tanto ter ocorrido de errado durante tantas décadas a fio, os presidentes sucessivos não parecem ter memória, nada terão aprendido com o que erraram os antecessores. E essa é a razão para Heddy ter posto no título do seu filme esse esquecimento, que funciona quase como um estigma.



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