Em 1971 tivemos acesso lá em casa ao primeiro gira-discos, substituindo o volumoso gravador de bobinas, até então utilizado para copiar os discos dos amigos ou alguns programas da rádio. .
Quando se tratou de comprar o primeiro disco, fi-lo na rua do Carmo e a escolha foi para «Songs of Love and Hate» de Leonard Cohen, acabado de lançar. Desde então temas como «Joan of Arc», «Famous Blue Raincoat» ou «Avalanche», então ouvidos milhentas vezes, nunca mais se me apagaram da memória.
É-me, pois, muito antiga a particular estima pela obra do cantautor canadiano, cujos temas melancólicos aproximam-se do que posso configurar como paradigma da beleza na criação musical. A voz grave a entoar cada sílaba com límpida clareza, acompanhada por uma toada lenta, entrecortada por estribilhos fáceis de memorizar, tornou-se facilmente identificável dentro da crescente cacofonia da música ocidental. Distinguindo-o, distanciando-o de todos os outros.
Ademais, tivesse sido ele a ganhar o Nobel da Literatura em vez de Dylan, não me teria sentido nada indignado. Embora continuasse a apostar em DeLillo, aceitaria essa opção como perfeitamente natural. Porque, ao contrário do autor de «Mr. Tambourine Man», Cohen era deveras um grande escritor, tendo obra publicada sem qualquer relação com as suas canções. E se, politicamente, nem um nem outro tenham sido suficientemente reveladores sobre o que pensavam, as canções de Cohen permitem ler nas entrelinhas os seus alinhamentos às esquerdas ao contrário de Dylan que, desde o acidente da mota, passou a fugir de qualquer suposto envolvimento como diabo na cruz. À distância sentimos bastante mais pertinência na constatação de termos de conquistar manhattans antes de apontarmos baterias a berlins do que entregarmo-nos a passivas constatações de os tempos estarem a mudar!
Aconteceu, igualmente, que, nos muitos anos navegados pelos vários oceanos, os álbuns de Cohen me tenham acompanhado para povoar o vazio dos camarotes. Os textos, porventura mais inspirados, então escritos na forma de cartas para quem em casa aguardava pelo meu regresso, tiveram frequentemente as canções de Cohen como banda sonora. Porque elas influenciavam-me no lirismo romântico com que procurava mitigar a saudade.
É certo que foram frequentes as muitas ausências de Cohen, dando-nos a entender o seu apagamento criativo. Mas cada ressurgimento vinha demonstrar quão enganados andávamos, com as novas canções a integrarem-se no núcleo das que escolheríamos numa eventual antologia da sua obra. Take this waltz, por exemplo, tornou-se num daqueles grandes clássicos, que seria injusto esquecer quando regressamos aos grandes temas da cultura popular nos finais dos anos 80.
Já foi neste milénio, que tivemos o ensejo de o ver ao vivo em Lisboa. Na altura a opção revelava-se difícil: entre ele no Pavilhão Atlântico ou Lou Reed no Campo Pequeno qual escolher? Decidimo-nos por ele, que imaginávamos já não voltarmos a ver após essa tournée, mas afinal cá voltaria mais três vezes. E valeu a pena, porque, na sua timidez temperada pelos métodos do budismo, Cohen revelou-se igualmente um excelente homem de palco.
Agora que desapareceu do mundo dos vivos multiplicam-se os elogios e voltam a ouvir-se-lhe as canções. As de há quarenta, as de há trinta, as de há vinte, as de há dez anos, as de há um mês.
Quando for a vez de cumprirmos o epitáfio de Dylan, que canções se lhe ouvirão? As dos anos sessenta, claro que sim. Mas desde o já distante «Hurricane», que produziu ele de audível?
Três semanas passadas sobre a escolha da Academia Sueca ainda mais se torna óbvio o seu equívoco...
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