No texto anterior sobre este romance de Olivier Rolin, tínhamos visto que o narrador havia conhecido o arqueólogo Vollander numa noite em que estava a jantar no restaurante do costume em Cartum. “Uns afirmavam que o pai dele era um alto dignitário nazi, e que tinha procurado esquecer, no amor ao passado e aos desertos cendrados que sepultavam os seus vestígios, a vergonha de uma família bárbara. Outros diziam saber que aquilo de que ele fugira era a sinistra prisão soviética que a RDA representava. Outros ainda viam nele um antigo espião comunista, manipulador de grupos terroristas cujas retaguardas estavam no Sudão.
Estes boatos, vinculados por espíritos geralmente deformados e ignorantes, pareciam-me todos igualmente plausíveis: que o mesmo é dizer identicamente fortuitos.” (pág.55)
Temos, pois, em Vollander um estereotipo deste tipo de literatura: personagens vagamente apátridas, mesmo que vinculados a nacionalidades precisas, e concentrando em si as mais díspares informações, quantas delas a contradizerem-se entre si.
Curiosamente passei por cenários semelhantes em espaços não europeus e nunca encontrei estes corto malteses tão enaltecidos pela literatura. No caso dos portugueses de outras latitudes e longitudes o apego ao seu ponto de partida sempre me surpreendeu, porque, nunca tendo tido grande apego nacionalista à pátria, o facto de o constatar nesses interlocutores ter-me-á feito sentir desconcertado no pensamento: estarei a perder algo com a indiferença para com esse lugar mitificado?
No romance o narrador mostra-se disposto a separar-se definitivamente desse berço: aproveitando a necessidade de voltar à Europa para assistir aos últimos dias de vida de um amigo, ele decide fazer as suas despedidas com Paris. “Cedi então a um cobarde impulso cujas consequências foram incalculáveis. (...) Creio que não resisti ao desejo de rever os lugares onde se desenrolara a parte viva da minha vida, de fazer a mim mesmo a suspeita caridade de um qualquer enternecimento. (pág. 79)
É nesta fase do romance, que ficamos a saber algo mais sobre essa Alfa, a jovem muçulmana responsável pelo seu voluntário exílio: “A partida de Alfa foi uma desgraça que aprendi a acreditar (sem nunca entender muito bem) que se abatera sobre mim por culpa minha, o abatimento no qual havia mergulhado só se explicava a longo prazo pelo mistério esgotante daquela culpabilidade assumida sem ser compreendida. O exílio no Sudão é apenas a forma visível, aceitável, quase suportável (já que fui eu, incontestavelmente, que assim decidira) de um degredo bem mais grave e cujas razões eu não conseguia desenredar.” (pág. 83)
Para tentar a recuperação das memórias de Alfa, o narrador contrata uma modelo quase sua sósia, durante seis semanas, e acompanha-a de bloco na mão apontando o que via nos seus gestos, nas suas expressões.
Mas Cartum volta a ser o seu local de destino, mormente para se dedicar a um novo passatempo sugerido por Vollander: estudar os reinos medievais do Sudão.
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