Em “Sofia ou a Educação Sexual” (1973) Eduardo Geada não compõe um filme apenas sobre a descoberta sexual. Constitui um manifesto cinematográfico sobre como o poder inscreve-se nos corpos, especialmente nos femininos. Num Portugal ainda asfixiado pelo moralismo do Estado Novo, a história de Sofia – uma jovem burguesa esmagada entre desejo e repressão – revela-se um diagnóstico eloquente da hipocrisia social. E, meio século depois, esse diagnóstico continua a assombrar-nos como um fantasma incómodo.
A sociedade que Geada retrata vive obcecada com performances de virtude. Os casamentos são fachadas de respeitabilidade, as virgindades transformam-se em troféus familiares, e os mesmos homens que condenam a libertinagem nos púlpitos consomem-na às escondidas nos bordéis. Neste mundo de duplicidade moral, o corpo feminino não é um lugar de prazer, mas um território ocupado – pela Igreja, pelo Estado, pelo marido.
O interesse do filme consiste em revelar como funciona essa coreografia do poder: Laura, a "libertina", é simultaneamente desejada e condenada pelo sistema. Ela existe como válvula de escape para os desejos que a própria burguesia precisa negar. E Sofia, a "respeitável", descobre que sua suposta pureza é apenas outra forma de prisão.
As cenas de intimidade no filme negam-na. Os encontros sexuais são mecânicos, desligados, quase violentos. Geada mostra como no regime fascista, até o erotismo é cooptado pelo poder. O verdadeiro desejo não está no ato físico, mas no olhar que o precede – no voyeurismo dos vizinhos, na luxúria disfarçada de preocupação moral.
Quando Sofia vê-se nua no espelho, temos o momento mais revelador do filme: ela não consegue reconhecer-se. O seu corpo foi tão colonizado pelos outros que tornou-se estranho a si próprio. É esta a tragédia que Geada expõe – a de mulheres educadas para serem espectadoras das próprias vidas.
Laura parece representar a libertação, mas a rebeldia é tão representada quanto a virtude de Sofia. Ela rejeita as regras, mas torna-se prisioneira do papel de "a outra". A sexualidade aberta é um grito de revolta, não um projeto de emancipação. Está aqui a crítica de Geada: num sistema podre, nenhuma escolha é inteiramente livre.
O filme antecipou debates atuais: a diferença entre a liberdade sexual e a autonomia real; o feminismo como projeto coletivo (não apenas individual); o modo como o patriarcado recicla as formas de controle.
Em 2024, quando as redes sociais vendem ilusões de empoderamento através de selfies ousadas e discursos vazios, Sofia continua pertinente. Quantas mulheres, como Sofia, ainda trocam um tipo de performance por outro sem alcançar a verdadeira autonomia?
Geada não oferece respostas fáceis. O filme é um espelho partido – e como todos os espelhos partidos, mostra-nos a imagem distorcida que precisamos encarar. A educação sexual que o filme reclama não é sobre técnicas ou posições, mas sobre poder. Sobre quem tem o direito de definir o que é liberdade.
Talvez por isso, meio século depois, “Sofia ou a Educação Sexual” continue a ser mais do que um documento histórico sobre a época em que foi rodado: é advertência para um presente que, em muitos aspetos, ainda não aprendeu a lição.
Num mundo que transformou a liberdade sexual em mercadoria, será que aprenderemos a ler nas entrelinhas do nosso desejo – ou só trocámos um guião antigo por outro igualmente opressor?
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