Os amigos sabem-no bem demais e, alguns deles até me têm contrargumentado com as suas razões para dissuadirem-me do que penso, mas bem sabem como não vale a pena: sei que a ciência do século XX, e a já prosseguida por este século adentro, é prenhe em provas em como a “alma” humana não existe e essa coisa do “espírito” não é mais do que a manifestação engenhosa da matéria de que somos feitos. Não é por acaso que, vendo como se estilhaça o logro em que assentaram as religiões e todas as "filosofias" de vida - que tanto proveito deram a uns quantos vigaristas do pensamento! -, sejam os governos das direitas e das direitas extremas, com Trump na primeira linha, mas com o de Montenegro a seguir-lhe a peugada com a extinção da FCT e do notável legado de Mariano Gago, a tomar a ciência como inimiga. É nesses pressupostos, que olho para “Blade Runner 2049” com a resistência de quem não aceita essa ideia de replicantes com ou sem "alma".
A estética do filme é interessante, mas é precisamente esse espalhafato que serve de véu para uma ideia que incomoda: a romantização da consciência artificial como substituto da alma humana. A personagem K, um replicante que começa a questionar a sua origem e lugar no mundo, é apresentada como alguém que sofre, ama, deseja — como se essas experiências fossem suficientes para lhe conferir humanidade. Mas será que são?
O filme não é uma ode à liberdade dos seres artificiais, mas antes uma tentativa de reabilitar a velha crença na transcendência, agora reciclada em linguagem tecnológica. A “alma” que, dantes, era dom divino, surge aqui como produto emergente da complexidade computacional. E é nesse ponto que o filme me perde: não por falta de competência de quem o fez ou de densidade narrativa, mas por insistir numa ilusão que a ciência já desmontou.
O que interessa não é a pergunta “os replicantes têm alma?”, mas sim “por que continuamos a querer que tenham?”. Talvez porque, ao atribuir “alma” ao que é feito de silício e código, possamos continuar a acreditar que também nós somos mais do que carne e impulsos elétricos. É uma forma de consolo — sofisticada, sim, mas ainda assim consolo.
Há algo de profundamente humano na recusa da alma. Na aceitação de que somos matéria pensante, perecível, contraditória. “Blade Runner 2049”, ao tentar elevar os replicantes à condição de sujeitos “espirituais”, acaba por reforçar uma nostalgia metafísica que já não tem fundamento.
Prefiro a crueza da biologia à poesia da simulação.
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