Olho para aquela fotografia e o que vemos? É um exercício tentador: perante as imagens de momentos históricos que pensamentos se acotovelavam nas mentes dos que nelas surgem? É que imprevisíveis transformações estavam iminentes e eles só poderiam lidar o melhor possível com as suas contradições.
Hitler curvado sobre a maquete de Linz, como se desvendasse um futuro já escrito. Sinto o peso daquela cena a atravessar o tempo e pergunto-me como um homem que nunca completou um curso e sem qualquer formação profissional reconhecida, pôde atrair milhões para um pacto de morte coletiva.
Por instantes, imagino-me no bunker, tentando decifrar o brilho nos seus olhos. Via ali apenas pedra e arte, ou alimentava um frenesim interior que transformava cada bloco da maquete em propaganda viva? A cada pergunta, um frio no estômago: como ideais tão primitivos encontraram tanta ressonância?
Interrogo-me sobre as raízes dessa convicção em massa. Um ex-artista frustrado, filho de uma família humilde da Áustria, alcança o poder por sedução verbal, teatro de desigualdades e promessa de redenção nacional. Eu, com todos os meus diplomas e certezas, luto para compreender a força de um discurso enraizado no ódio e na inveja.
Naquele instante congelado em preto e branco, Hitler não era mais do que um contador de histórias capaz de transformar frustrações em fervor coletivo. Vejo ecoar a pergunta cruel: por que tantos acreditaram em fantasias tão rasas? A resposta foge, entre sombras de chantagem emocional e manipulação sistemática.
Sinto vazio diante da maquete. Ela revela não só um sonho megalómano, mas a tragédia de gente seduzida por promessas de grandeza fáceis de repetir. Como, espectador moderno, posso evitar cair em armadilhas similares quando o espetáculo do poder faz-se com imagens grandiosas e frases de efeito?
Desvendar essa fotografia é um exercício de vigilância histórica. É perguntar sobre a responsabilidade individual e coletiva: como escolhemos em quem confiar? Que mecanismos tornam-nos vulneráveis ao discurso do inconsciente coletivo?
E quem são os dois homens ao lado de Hitler, curvados sobre a maquete de Linz?
Seria Albert Speer, o arquiteto-chefe, segurando o chapéu com os dedos trêmulos? Consigo imaginar-lhe o peso nos ombros: o misto de orgulho pela obra concebida e a ansiedade amarga por vê-la desvanecer-se diante do caos. Sentia, ao mesmo tempo, o fervor de fidelidade a Hitler e a frustração de quem sabia que nenhum museu monumental cresceria das ruínas.
E o terceiro homem, ali, de rosto contido, seria Otto Günsche, o adjunto pessoal e guarda-costas, ou Nicolaus von Below, o oficial da Luftwaffe? O que lhe teria passado pela mente enquanto observava o culto apocalíptico no bunker? Terá sido o dever inquebrantável de proteger o Führer a sufocar o medo crescente do colapso inevitável? Ou o tormento silencioso de um soldado dividido entre a lealdade e o horror de participar do desmoronar de um sonho genocida?
Fico a imaginar o silêncio que pairou depois do clique da câmara. Cada um ali, imerso na própria tormenta: Speer sonhando com colunas que nunca ergueria, Günsche ou von Below debatendo-se entre o juramento feito e a verdade que todos temiam admitir. Por trás do véu histórico, pergunto: que memórias carregariam desses instantes, obscuras como as galerias de um museu inacabado?
Permaneço diante da fotografia, imerso no silêncio que parece atravessar o tempo. Penso na jovem enfermeira que, ao ouvir o brado de “vitória ou morte”, marchou confiante para a frente russa. Vi-a, em sonhos distorcidos, acenando para a linha de tanques enquanto a neve derretia em sangue e vidro quebrado. Levou consigo a ilusão de uma pátria invencível e, no fim, sucumbiu em Estalinegrado, sob um céu de chumbo que jamais gravaria a sua lealdade.
E imagino o operário de Linz, o rosto ainda marcado pelas longas jornadas na fábrica de armamentos. Ele acreditou que a grandeza de sua cidade-museu compensaria cada hora exaustiva a soldar blindagens. Quando os bombardeamentos começaram, ele agarrou-se à esperança de reconstruir mais tarde. Mas a maquete derreteu-se junto às casas em ruínas, e restou-lhe apenas o eco das sirenes e o cansaço de quem sobreviveu sem motivo.
Penso, então, no oficial que deixou a esposa e os filhos, persuadido de que cada sacrifício pessoal engrandecia o Reich. Ao segurar o volante de um camião sobre trilhos de morte, sentiu o peso de cada decisão. No crepúsculo de abril de 1945, preferiu o fim solitário ao acolhimento dos vencedores.
Eles acreditaram, com fé cega, que a megalomania de pedra e arte os salvaria. Mas, no final, não havia museu algum para recebê-los, e as ruas de Linz permaneciam desoladas. Os poucos que retornaram, carregavam as cicatrizes dos bombardeamentos, e, sobretudo, a culpa — uma armadura invisível que os impedia de regressar à vida comum.
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