sábado, agosto 16, 2025

“Rosinha e outros Bichos do Mato” de Marta Pessoa: contraponto entre o passado e o presente

 

É uma das peças de música clássica que mais aprecio, sobretudo desde que o António Mega Ferreira a escolheu para a banda sonora da apresentação de uma Festa da Música no CCB – a melhor de quantas ali organizou, durante e após a colaboração com René Martin. A dança "Les Sauvages", que Jean-Philippe Rameau inseriu na ópera "Les Indes Galantes", é utilizada de forma particularmente judiciosa por Marta Pessoa no documentário "Rosinha e outros bichos do mato". Através dela, o filme equaciona uma interrogação central: que imagem fazia o país de si mesmo na época das Exposições Coloniais, principalmente na de 1934, no Palácio de Cristal do Porto, onde esteve a balanta Rosinha?

Duas das cenas mais curiosas do filme estão separadas por alguns minutos: na primeira, meia dúzia de jovens bailarinos negros ou mestiços recriam a dança da ópera de Rameau; na segunda, outras tantas bailarinas, vestidas com o icónico traje de minhota, repetem a mesma intenção, numa dança a que não faltam os movimentos do vira.

Selvagens, uns e outros, na aceção do aristocrata que levou ameríndios à corte de Luís XV? O documentário leva-nos a questionar: quem somos e como vemos os outros, os diferentes?

Todas estas questões surgem explícitas na abordagem de Marta Pessoa, que oferece um documento inteligente sobre o colonialismo português e a evidência de que, apesar da propaganda em contrário, continuamos a ser um povo extremamente racista. O peso da votação do Chega nas recentes eleições é a prova de que a história não é apenas um eco, mas uma presença ativa.

O que o documentário de Marta Pessoa faz é não se limitar a revisitar o passado. Através da montagem e do contraponto, a realizadora transforma a passividade das imagens de arquivo numa crítica viva e urgente ao presente. As filmagens de 1934, com a sua violência intrínseca e o olhar de superioridade, são confrontadas não apenas com as danças contemporâneas, mas com as vozes de historiadores e ativistas que trazem à tona a dor e o trauma por detrás das imagens.

Ao dar centralidade à figura de Rosinha, o filme não apenas resgata uma história apagada, mas humaniza o "outro" que a Exposição Colonial pretendia reduzir a um espetáculo. A escolha do título, "Rosinha e outros bichos do mato", é um ato de subversão: a frase, que o regime provavelmente usaria com desprezo, é reapropriada para denunciar a desumanização.

O documentário de Marta Pessoa é um espelho desconfortável que dá-nos a ver uma faceta da nossa história que nos é, amiúde, sonegada. A "suavidade" do colonialismo português é desmascarada, e o racismo estrutural que a suportou é exposto.

A relevância do filme reside precisamente aqui: não só mostra de onde viemos, mas também ajuda a entender por que ainda não saímos de lá. Lembra-nos que o passado não está morto; pelo contrário, continua a moldar as nossas perceções e, infelizmente, as escolhas políticas de demasiados eleitores.

 

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