A obra de Thomas Mann não pode ser dissociada do conflito que lhe definiu a existência: a luta entre a rígida fachada do burguês conservador e os fantasmas de um artista sensível e homoerótico. Esta tensão, longe de ser uma mera curiosidade biográfica, é o motor da sua identidade literária, percorrendo-lhe a obra desde “Os Buddenbrook” até “As Confissões do Felix Krull”.
Tudo começa com a história de uma família. Publicado quando Mann tinha apenas 25 anos, “Os Buddenbrook” foi inicialmente celebrado pela própria burguesia hanseática de Lübeck como um monumento à sua grandeza. A sociedade via-se retratada na sua solidez, nos rituais e no poder económico. No entanto, essa foi uma leitura profundamente equivocada. O que Mann realmente esculpiu foi uma lápide.
O romance traça o declínio inevitável de uma família mercantil, não por falência financeira, mas por decadência moral. A tese de Mann é que o sucesso burguês gera, paradoxalmente, a sensibilidade artística que o destrói. O último herdeiro, Hanno, é demasiado refinado, demasiado musical, demasiado artista para sobreviver no mundo prático dos negócios. Aqui, no seu primeiro grande trabalho, Mann já estabelece o seu grande tema: o conflito irreconciliável entre a vida (o mundo prático, burguês) e o íntimo de cada um (a arte, a sensibilidade, a doença).
Politicamente, o Mann jovem alinhava-se com este mundo burguês. Durante a Primeira Guerra Mundial, nas “Reflexões de um Apolítico”, defendia um conservadorismo cultural alemão, desdenhando a democracia ocidental. Era a posição pública do patriarca, do Nobel de Literatura, do exilado que se tornou num paladino da democracia contra os nazis – uma transformação notável, mas que manteve sempre uma fachada de rigor e respeitabilidade.
Porém, por detrás desta máscara, os diários que Mann manteve durante toda a vida revelaram um homem assombrado por desejos que iam absolutamente a contrario dessas crenças públicas. As suas páginas estão repletas de confissões sobre a intensa atração erótica por homens jovens. Esta não era uma tendência ocasional, mas uma força poderosa e constante na sua vida interior, fonte de enorme angústia e autoquestionamento.
Foi esta tensão que encontrou expressão artística em “Morte em Veneza” (1912). Na história de Gustav von Aschenbach, um escritor envelhecido que consome-se numa paixão obsessiva e platónica pelo jovem Tadzio, Mann sublimou os desejos proibidos. A obra é um estudo sobre a repressão, a beleza como armadilha mortal e a erosão da disciplina burguesa perante a força do eros.
O seu conservadorismo público e os fantasmas privados coexistiam num equilíbrio precário. A decisão de que os diários mais íntimos só fossem publicados 20 anos após a sua morte é a prova máxima deste conflito. Era o gesto de um homem que precisava de ser honesto consigo próprio, mas temia acima de tudo que a exposição total da sua verdade interior destruísse a imagem pública e o legado da família. Ele queria o controlo absoluto da sua narrativa, mesmo para além da morte.
É no seu último romance, “As Confissões do Felix Krull” (iniciado em 1910 e concluído apenas na velhice, em 1954), que todas estas linhas convergem numa gloriosa farsa. Krull, o vigarista de charme inigualável, é a personificação da arte como embuste. Ele é tudo o que Mann não podia ser abertamente: um homem que rejeita completamente os valores burgueses de honestidade e trabalho, e vive da capacidade de desempenhar papéis, de seduzir e iludir.
Krull é o alter ego libertador de Mann. Através dele, o autor celebra a arte da representação que lhe permitiu navegar entre mundos contraditórios. Krull triunfa precisamente porque a sociedade que ele engana é superficial e valoriza mais a aparência do que a verdade. Neste sentido, a vigarice de Krull é a paródia final da própria hipocrisia social que Mann conhecia tão intimamente.
Thomas Mann foi, assim, um homem de contradições fundamentais: o burguês que diagnosticou a decadência da própria classe; o conservador com uma vida interior radicalmente subversiva; o marido e pai dedicado que fantasiou com uma sexualidade marginal.
Mas estas não foram fraquezas. Foram estas mesmas contradições, entre a convenção e o desejo, entre a verdade e a representação – que alimentaram uma das obras literárias mais celebradas do século XX, exploração artística dos demónios que, na vida real, esforçou-se por manter trancados a sete chaves, confiando que só o tempo poderia revelar a complexidade total do homem por detrás da máscara.
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