Há uns meses vi o Mário Augusto defender com unhas e dentes "O Caçador" de Michael Cimino. Ora, o filme foi, na época, um dos meus ódios de estimação, subscrevendo então as cobras e lagartos, que a Jane Fonda dele dissera para fundamentar a qualificação de reacionário.
Passadas décadas sobre a sua estreia, o filme de Cimino não só mantém intactas as suas características mais problemáticas, como o tempo veio revelar a profundidade da sua visão ideologicamente enviesada. Longe de ser apenas um retrato do trauma de guerra, "O Caçador" constrói uma narrativa que sistematicamente apaga a realidade histórica em favor de uma mitologia reconfortante para o público americano.
A representação dos vietnamitas em "O Caçador" não é meramente descuidada – é estruturalmente orientalista. Os vietnamitas aparecem exclusivamente como sádicos desumanizados, desprovidos de qualquer motivação política ou histórica compreensível. A famosa sequência da roleta russa, além de historicamente infundada, serve como metáfora perfeita do que o filme faz: transforma uma guerra de libertação nacional complexa numa espécie de jogo macabro perpetrado por asiáticos intrinsecamente cruéis.
Esta estratégia narrativa não é inocente. Ao retirar qualquer contexto político ao conflito vietnamita, Cimino consegue apresentar a intervenção americana como uma tragédia cósmica, em vez de uma agressão imperialista com consequências devastadoras para milhões de pessoas. Os americanos surgem como vítimas de forças incompreensíveis e irracionais, nunca como participantes de uma guerra que eles próprios desencadearam.
O filme utiliza o retrato da comunidade operária de origem eslava como uma espécie de álibi moral. Cimino constrói um mundo de solidariedade masculina, rituais comunitários e valores tradicionais que a guerra virá destroçar. Esta nostalgia pela América da classe trabalhadora branca funciona como escudo contra acusações de elitismo, mas esconde uma operação ideológica mais subtil.
Ao centrar a narrativa numa comunidade específica – branca, católica, patriarcal –, o filme consegue universalizar uma experiência particular, apresentando-a como representativa de toda a América. As questões raciais, os movimentos de protesto, a diversidade das experiências da guerra, tudo isso desaparece em favor de uma visão homogénea e nostálgica que ignora as divisões reais da sociedade americana dos anos 60 e 70.
"O Caçador" tem uma abordagem do trauma de guerra que se tornaria dominante no cinema americano: a psicologia em detrimento da politica. Ao concentrar-se nos efeitos psicológicos da guerra sobre os indivíduos, o filme evita sistematicamente questionar as causas políticas desses mesmos traumas.
Michael (Robert De Niro) regressa transformado, mas nunca questionamos o sistema que o enviou para o Vietnam. Nick (Christopher Walken) perde-se na roleta russa, mas a sua deriva é apresentada como consequência de uma crueldade asiática inexplicável, não como resultado de uma guerra imperialista. Steven (John Savage) fica mutilado, mas a sua condição surge como fatalidade, não como responsabilidade política.
Esta estratégia permite ao filme gerar compaixão pelos veteranos sem nunca confrontar as estruturas de poder que os instrumentalizaram. O sofrimento individual torna-se espetáculo catártico que dispensa a análise política.
Talvez o aspeto mais insidioso de "O Caçador" seja a forma como reescreve a história do conflito vietnamita. O filme não só ignora a realidade da guerra – as suas origens coloniais, a resistência legítima do povo vietnamita, a brutalidade das forças americanas –, como constrói uma contranarrativa que inverte as posições de agressor e vítima.
Na versão de Cimino, os americanos são turistas inocentes apanhados numa violência incompreensível. Os vietnamitas são sádicos sem motivação. A guerra torna-se um encontro entre a civilização e a barbárie, em que a civilização (branca, cristã, ocidental) sai derrotada não por falhas próprias, mas pela irracionalidade do outro.
Quarenta anos depois, as opções ideológicas de "O Caçador" revelam-se ainda mais problemáticas. Numa época em que a América continua a intervir militarmente pelo mundo fora, o modelo narrativo inaugurado por Cimino – que transforma agressores em vítimas e apaga as perspetivas dos colonizados – mantém-se perigosamente atual.
A defesa contemporânea do filme, que tende a invocar a sua qualidade artística ou a legitimidade do sofrimento dos veteranos, ignora a dimensão política da representação. Como se a excelência técnica pudesse neutralizar a violência ideológica, ou como se a compaixão pelos soldados americanos justificasse o apagamento dos povos que eles ajudaram a massacrar.
Jane Fonda tinha razão: "O Caçador" é um filme reacionário. Não pela oposição explícita ao progresso social, mas pela forma subtil como reconstrói a memória histórica em favor das narrativas dominantes do poder. É um filme que ensina o espectador a sentir empatia pelos opressores e a esquecer os oprimidos. E essa lição, infelizmente, continua a fazer escola.
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