Escrever sobre Jean-Luc Godard é tentar apreender um homem que, em vida, tornou-se num mito, uma esfinge que escondia-se nas imagens e revelava-se nas citações. A pergunta sobre quem era Godard por trás da lente é, talvez, a mais crucial e impossível de todas. A resposta não está em nenhuma biografia; está nas contradições que lhe definiram a vida e ele deixou transparecer na sua obra.
Ele era o crítico que transformou-se em cineasta. O intelectual de Paris que veio de uma família burguesa e suíça, se revoltou contra as origens, mas que carregou para sempre o peso da sua educação. O Godard que conhecemos é um provocador que, por vezes, parecia ter um coração gelado, obcecado pela teoria e pela política. E, no entanto, é o mesmo homem que, em “O Desprezo”, permitiu que a banda sonora de Georges Delerue perfurasse a sua narrativa cerebral e nos inundasse com uma melancolia que só a mais pura das emoções pode evocar. O homem estava ali, na fragilidade de um amor a desintegrar-se, na beleza de uma melodia que não precisava de palavras para que fosse entendida.
A sua vida foi uma soma de ruturas. A adolescência, marcada pelo desprezo pela moral burguesa, culminou no corte com a família. O seu cinema, inicialmente um grito contra o cinema tradicional, evoluiu para um cinema militante. A desilusão com o Maio de 68 levou-o a uma nova rutura, desta vez com o seu próprio estatuto de "autor", e com a linguagem do cinema que o havia feito famoso. Tentou esconder-se atrás do coletivo do Grupo Dziga Vertov, numa tentativa de silenciar a voz do "eu".
Mas o "eu" de Godard era demasiado forte para ser calado. A sua própria fragilidade, manifestada num grave acidente de mota, foi o catalisador para um regresso. A parceria com Anne-Marie Miéville foi um porto de abrigo, um espaço onde a experimentação com o vídeo assumiu a forma de autoria íntima e de reflexão sobre o mundo. O Godard da fase final não era o provocador do passado, mas o pensador que, na obra monumental “Histoire(s) du Cinéma”, conjugou o historiador, o crítico e o poeta de si mesmo.
O homem por trás da lente era, afinal, o próprio Godard. Um homem que viveu para o ofício, se recusou a aceitar as convenções, amou e sofreu, e colocou tudo isso no seu trabalho. A morte, por suicídio assistido, não foi um ato de desespero, mas o último "corte" na obra. Foi o final que ele escolheu, o último ato de um cineasta que demandou controlo total sobre a sua biografia. É por isso que, quando olhamos para a sua filmografia, não vemos apenas títulos; vemos a vida, as paixões e as contradições de um homem que transformou o próprio ser na mais complexa e fascinante das obras de arte.
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