terça-feira, agosto 12, 2025

O leitor perante o horror cósmico

 

Tal como muitos leitores, gosto tanto dos romances, novelas e contos de H.P. Lovecraft, que comprei as obras completas editadas pela Robert Laffont, e tenho esses calhamaços guardados para altura em que me possa dedicar à leitura com a atenção que merecem. A fruição é total e planeada.

E, no entanto, é precisamente aqui que a perplexidade se instala: para ser brando Lovecraft era um homem com um pensamento problemático. As cartas e ensaios revelam um conservadorismo elitista, um racismo e uma xenofobia que hoje seriam impensáveis. Ele temia o "outro", o estrangeiro, e via na "poluição" das raças a decadência da civilização. Estes são factos que não se podem ignorar, e conotam-no com a ideologia da extrema-direita que, infelizmente, continua a apropriar-se da sua figura.

Essa perplexidade reside no facto de, em Lovecraft, conseguir relativizar aquilo que não aceito em mais ninguém. Outros autores, que considero fascistas, xenófobos ou racistas, integram o "index" pessoal de intolerância feito de obras evitadas, porque contaminadas pelas suas ideologias. Mas com Lovecraft não. Porquê?

Talvez a explicação resida numa distinção subtil mas fundamental. Nesses outros autores, a ideologia é o tema, a mensagem direta da obra. O racismo não é o substrato, mas a tese. A sua literatura é, muitas vezes, uma ferramenta para propagar o ódio e a intolerância.

Em Lovecraft, a história parece diferente. Os preconceitos e medos pessoais não são a mensagem, mas a matéria-prima do seu horror. O medo do desconhecido, do caos e da decadência traduziu-se num terror cósmico que transcende o pessoal. Ele pegou nos próprios terrores e universalizou-os, transformando-os em algo muito maior: o medo da nossa insignificância perante forças cósmicas vastas e indiferentes.

Ao ler Lovecraft, consigo concentrar-me na criação — no horror, na atmosfera, no estilo — e separá-la do criador. É uma leitura que reconhece a influência problemática de um no outro, mas não deixa consumir-se por ela. É por isso que posso fruir do terror de Cthulhu e das vastas forças primordiais, sem ter de aceitar as lamentáveis opiniões do homem que as imaginou. 

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