sábado, agosto 16, 2025

"O Homem da Câmara de Filmar" de Dziga Vertov: cinema como pensamento em movimento

 

Tenho muitos filmes diletos na História do Cinema, pelo muito que me ensinaram e continuam a influenciar sempre que os revejo. Este é um deles.

Mais do que um filme, é uma experiência sensorial e intelectual que desafia os limites da linguagem cinematográfica. Vertov não oferece uma história, personagens ou diálogos — oferece-nos o mundo. Um mundo captado pela lente de uma câmara que não pretende apenas observar, mas revelar. A cidade pulsa, os corpos movem-se, as máquinas trabalham, e tudo isso é orquestrado por uma montagem que transforma o quotidiano em espetáculo. Cada plano parece escolhido com precisão cirúrgica, não para ilustrar, mas para provocar — provocar pensamento, provocar emoção, provocar consciência.

O que fascina é a confiança absoluta que Vertov deposita na imagem. Sem intertítulos, sem narração, sem guia — apenas a força visual e rítmica da montagem. É como se dissesse: “Olha, pensa, sente.” E nós sentimos. Sentimos o fervor da modernidade, o entusiasmo pela coletividade, a crença num futuro moldado pela ciência, pelo trabalho e pela consciência revolucionária. A câmara não é apenas um instrumento técnico; é uma extensão do olhar ideológico, uma ferramenta para construir uma nova forma de ver o mundo.

Há, claro, um discurso político subjacente. Vertov não filma por filmar; filma para transformar. A câmara é um olho novo, um olho que vê melhor que o humano, que penetra a superfície das coisas e mostra a engrenagem social em funcionamento. É um cinema que não se limita a representar — intervém. A montagem dialética, inspirada nas ideias marxistas, constrói significados por contraste, por ritmo, por choque. O operário e a máquina, o lazer e o trabalho, o indivíduo e a massa — tudo se articula numa coreografia visual que convida a pensar a sociedade como organismo vivo.

Rever O Homem da Câmara de Filmar é reencontrar a origem de tantas ideias que ainda hoje ecoam: o poder da montagem como pensamento, a cidade como personagem, o documentário como arte. É perceber que o cinema pode ser simultaneamente ciência, poesia e revolução. Vertov antecipa o cinema-ensaio, o cinema experimental, o cinema político — e fá-lo com uma ousadia formal que continua a surpreender.

O filme não envelhece porque não pertence ao tempo — pertence à visão. Uma visão que não se acomoda, que não se limita a entreter, mas exige do espectador uma postura ativa, crítica, envolvida. É um convite à reflexão sobre o papel do cinema na construção da realidade, na formação da consciência, na transformação do mundo.

Por isso, entre tantos filmes que aprecio, este permanece como um farol. Um filme que ilumina, inquieta, inspira. Um filme capaz de ensinar, sempre que o revejo, que o cinema pode ser mais do que arte — pode ser pensamento em movimento. 

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