Vivendo a conjugalidade há meio século com a Elza, não me é fácil perceber as dinâmicas que levam os casais a separarem-se, até mesmo a divorciarem-se. Como é que alguém foi tão importante, que se chegou ao compromisso da partilha das esperanças e dos obstáculos para alcançá-las, e depois consumou-se a rutura?
É precisamente esta pergunta inquietante que Júlio Alves explora no filme "A Arte de Morrer Longe" (2020), uma comédia agridoce sobre os mistérios da dissolução conjugal. Baseado no romance homónimo de Mário de Carvalho, o filme apresenta-nos Arnaldo e Bárbara, um casal em pleno processo de separação, cujos motivos nem eles próprios parecem compreender completamente.
O filme é honesto em retratar como, por vezes, as separações acontecem não por grandes dramas ou traições espetaculares, mas por um desgaste silencioso, uma erosão gradual daquilo que outrora foi sólido. O realizador português, conhecido pela abordagem das relações humanas, não procura explicações fáceis ou culpados óbvios. Em vez disso, mostra um casal perdido no labirinto da sua própria indiferença.
A tartaruga que ninguém quer funciona como uma metáfora brilhante – é simultaneamente o último elo que os une e o obstáculo que impede a separação definitiva. Este pequeno réptil torna-se o reflexo das responsabilidades partilhadas, dos compromissos assumidos e das memórias comuns que, mesmo quando o amor se esvaiu, continuam a criar laços invisíveis entre duas pessoas.
Para quem construiu uma vida inteira ao lado da mesma pessoa, o filme levanta questões pertinentes: será que o amor é suficiente para manter um casal unido? Ou será que a persistência, a paciência e a arte de reinventar constantemente a relação são elementos ainda mais fundamentais? Talvez a diferença entre os casais que resistem e os que se separam não resida na intensidade inicial do sentimento, mas na capacidade de transformar o amor numa prática quotidiana de cuidado mútuo.
Júlio Alves, realizador lisboeta nascido em 1971 e docente universitário na área dos estudos cinematográficos, constrói uma narrativa que evita os clichês do género. Não há vilões nem vítimas, apenas duas pessoas que perderam o mapa para chegarem uma à outra. A ironia final – quando percebem que já não precisam de se livrar da tartaruga, mas é demasiado tarde – sugere que por vezes só compreendemos o valor daquilo que temos quando já o perdemos.
O filme funciona como um espelho inquietante para todos os casais, independentemente da duração das suas uniões. Lembra-nos que o amor não é um estado permanente, mas uma arte a exigir prática constante, atenção e, sobretudo, a coragem de continuar a escolher diariamente a mesma pessoa, mesmo quando ela – e nós próprios – já não somos exatamente as mesmas que se apaixonaram.
Talvez seja essa a verdadeira "arte de morrer longe" – não a capacidade de se separar, mas a de permanecer próximo mesmo quando a distância parece inevitável, de cultivar a intimidade como quem cuida de um jardim que precisa de água todos os dias para não murchar.
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