Por preconceito menosprezei durante muito tempo a obra de Brahms a pretexto do seu conservadorismo. À questão levantada pelo título do romance de François Sagan, decerto responderia com um não.
Os anos passam, a maturidade morigera as certezas fáceis e eis-me a apreciar a obra do compositor nos auditórios da Gulbenkian ou do CCB, que ma foram servindo em doses homeopáticas. Suficientes, porém, para lhes dedicar outra atenção. Razão para, na Guerra dos Românticos, que agitou o universo musical europeu há século e meio deixar de tomar o partido de uns ou de outros. Realçando-lhes as características contraditórias mas, afinal para um melómano, perfeitamente conciliáveis.
Revisitemos então esses momentos intensos de debate estético: o confronto entre Johannes Brahms, por um lado, e Franz Liszt e Richard Wagner, por outro. Esse embate, conhecido como a “Guerra dos Românticos”, não foi um conflito pessoal, mas uma profunda divergência de ideias sobre o papel e o futuro da música. De um lado, Brahms representava a continuidade da tradição clássica; do outro, Liszt e Wagner encarnavam o espírito revolucionário da Nova Escola Alemã.
Johannes Brahms era um defensor da música absoluta — aquela que não depende de narrativas externas para se justificar. Influenciado por Beethoven, Bach e Mozart, Brahms acreditava na importância da forma, da estrutura e do desenvolvimento temático rigoroso. As suas obras procuravam o equilíbrio entre a emoção e a arquitetura musical, sem recorrer a programas literários ou filosóficos. O “Concerto para Piano nº 1 em Ré menor”, por exemplo, revela a tentativa de dominar a forma sinfónica com profundidade dramática, enquanto o “Requiem Alemão”, inspirado em textos bíblicos escolhidos, reflete uma espiritualidade humanista e introspetiva. As quatro sinfonias, especialmente a primeira, foram vistas como continuação da tradição beethoveniana, e o “Quinteto com Piano em Fá menor” mostra o refinamento da música de câmara com contida expressividade.
Em oposição, Franz Liszt e Richard Wagner propunham uma nova visão musical, baseada na música programática — inspirada em histórias, poemas ou ideias filosóficas. Liszt, com as obras para piano e os poemas sinfônicos como “Les Préludes” e “Mazeppa”, rompeu com a forma clássica e introduziu estruturas cíclicas e narrativas implícitas. A “Sonata em Si menor” é um exemplo emblemático dessa abordagem, fundindo virtuosismo com profundidade expressiva. Wagner, por sua vez, revolucionou a ópera com o conceito de Gesamtkunstwerk, a “obra de arte total”, que integra música, drama, poesia e cenografia. Obras como “Tristão e Isolda”, mormente na abertura, e o monumental ciclo de “O Anel do Nibelungo”, baseado na mitologia germânica, redefiniram os limites da música dramática e da harmonia tonal.
A tensão entre esses dois polos — tradição e revolução — teve repercussões duradouras na música posterior. Brahms influenciou compositores que buscavam unir a forma clássica e a linguagem moderna, como Arnold Schoenberg, que via em Brahms um “progressista disfarçado” pela técnica de variação progressiva. Schoenberg, embora tenha rompido com a tonalidade, reconheceu em Brahms um modelo de desenvolvimento temático e estrutura. Outros compositores, como Benjamin Britten, também herdaram esse gosto pela forma refinada e pela expressividade controlada.
Por outro lado, Liszt e Wagner abriram caminho para a liberdade formal, a expansão harmónica e a narrativa musical que definiriam o século XX. Richard Strauss levou os poemas sinfônicos a novos patamares, enquanto Mahler incorporou elementos wagnerianos nas suas sinfonias monumentais. A influência de Wagner na harmonia foi tão profunda que preparou o terreno para o atonalismo e o expressionismo musical, como se vê nas obras de Schoenberg, Berg e Webern. Mesmo compositores que reagiram contra Wagner, como Debussy, foram moldados pela sua estética, buscando novas linguagens como resposta à densidade dramática e harmónica do mestre alemão.
Assim, a Guerra dos Românticos não foi apenas um episódio de rivalidade artística, mas um momento definidor da história da música. Brahms, Liszt e Wagner traçaram caminhos distintos que se entrelaçaram e confrontaram, moldando o imaginário musical do Ocidente. A tradição e a revolução, longe de se anularem, coexistiram e fertilizaram o terreno para as inovações do século XX. O legado desses compositores permanece vivo, não apenas nas salas de concerto, mas na própria maneira como pensamos e sentimos a música.
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