Existem ideias tão poderosas na literatura que parecem estar fadadas a serem recontadas, a saltar de geração em geração, de autor para autor. A história de Peter Schlemihl, o homem que vendeu a sua sombra, é uma delas. A sua busca desesperada por aquilo que o torna visível e inteiro é um arquétipo tão forte que o vimos reaparecer na melancolia de António Tabucchi, e, de certa forma, até no filme português "Dulcineia".
Só que há uma diferença crucial. Se Schlemihl perseguia a sombra perdida, o protagonista de "Dulcineia", o escritor Hugo, vê a sua sombra—o seu gémeo bem-sucedido — chegar abruptamente e impor-se na sua vida. A promessa era fascinante: explorar a crise de identidade de um artista no seu ano sabático, confrontado com a versão de si mesmo que triunfou.
O problema é que, entre a ideia e a sua execução, algo se perdeu. Enquanto a história de Chamisso é uma alegoria atemporal sobre o que nos define, "Dulcineia", infelizmente, não consegue traduzir essa profundidade para o ecrã. O que deveria ser um confronto psicológico intenso com o "outro eu" torna-se num enredo confuso e superficial.
As análises da altura não perdoaram. O filme foi descrito como "incapaz de refletir o que quer que seja" e "pouco polido". A atuação, apesar do desafio do duplo papel de António Parra, não conseguiu dar vida e substância a um enredo que parecia mais um rascunho de uma boa ideia do que um filme propriamente dito.
No fundo, "Dulcineia" mostra quão difícil é adaptar uma ideia literária com tamanha carga simbólica. Nas mãos de Chamisso e Tabucchi, a sombra era uma metáfora para a essência humana, para o desejo, para a busca. No filme de Artur Serra Araújo, essa sombra é mais um artifício de enredo, que acaba por não dizer grande coisa.
No final, ficamos com a sensação de que, apesar de um ponto de partida brilhante, o filme não consegue encontrar o seu próprio lugar ao sol. A "Dulcineia", a melodia que o protagonista persegue, perde-se no caminho, deixando-nos com a sensação de que a história, tal como a sombra de Peter Schlemihl, ainda está à procura de casa.
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