sexta-feira, agosto 22, 2025

“Asteroid City” de Wes Anderson: o inexplicável no quotidiano

 

Chegado a esta idade e, sobretudo à circunstância de cuidar da Elza na doença, que há quatro anos nela se declarou, fui sensível a uma das narrativas inseridas por Wes Anderson em "Asteroid City": a da visita duplicada de um extraterrestre à cidade onde se concentra um esdrúxulo conjunto de personagens. Sobretudo porque ele explora uma ideia pertinente, mesmo que óbvia: no luto não se encontra explicação para a perda que se sofreu. E nenhum dos personagens do filme consegue encontrar fundamento para as duas visitas do alien. Porque, verdadeiramente, há coisas na vida (e, sobretudo, na morte!), que a não têm.

É o desconcerto perante este título do realizador, que mo tornam tão interessante: dos três norte-americanos que, hoje fazem jus à condição de autores com um estilo próprio, só neles reconhecível, Anderson - mais do que Nolan ou Tarantino - é quem me justifica a preferência.

O engenho de Anderson reside na forma como consegue transformar este reconhecimento da inexplicabilidade em cinema puro. Em "Asteroid City" (2023), constrói mais uma das suas meticulosas caixas de música cinematográficas, mas desta vez com uma diferença crucial: permite que elementos genuinamente desconcertantes perturbem a habitual coerência obsessiva. O resultado é uma reflexão profunda sobre o luto que dispensa explicações e abraça o mistério.

Anderson estabelece o seu universo característico logo nos primeiros minutos: cores saturadas cuidadosamente coordenadas, enquadramentos simétricos perfeitos, personagens que movem-se como peças de um elaborado mecanismo de relojoaria. Asteroid City, a fictícia localidade desértica onde decorre a ação, parece saída de um diorama, com cada elemento - desde a arquitetura retrofuturista até aos figurinos vintage - colocado com precisão milimétrica.

Esta obsessão pelo controlo visual não é mero preciosismo estético. Serve como metáfora para o tentamos organizar e dar sentido às nossas vidas, criando estruturas e rotinas que nos dão a ilusão de que compreendemos e dominamos a realidade que nos rodeia.

Acontece então o inesperado: um alienígena aterra na cidade, recolhe calmamente o meteorito que deu nome ao local, e desaparece. A cena é simultaneamente banal e extraordinária, filmada com a mesma compostura visual que Anderson aplica a conversas de pequeno-almoço ou discussões familiares.

Esta aparição alienígena funciona como uma metáfora brilhante para a experiência do luto. Tal como a morte de alguém próximo, o encontro é súbito, inexplicável e irrevocável. Não há preparação possível, não há explicação satisfatória, não há como desfazer o que aconteceu. De repente, as personagens (e nós, espectadores) vemo-nos confrontados com algo que desafia as tentativas de racionalização.

A quarentena que se segue ao avistamento não é apenas um dispositivo narrativo - é a materialização física do estado emocional em que o luto nos coloca. As personagens ficam literalmente presas, impossibilitadas de prosseguir quanto haviam planeado, forçadas a permanecer num limbo onde o tempo parece suspenso.

É neste período de confinamento forçado que as verdadeiras histórias emergem. Augie Steenbeck (Jason Schwartzman), um fotógrafo viúvo, luta para encontrar as palavras certas para contar aos filhos a morte da mãe. A relação com a atriz Midge Campbell (Scarlett Johansson) desenvolve-se como dança cuidadosa entre duas pessoas que reconhecem no outro a mesma fragilidade disfarçada de compostura.

Um dos momentos mais perturbadores do filme é o súbito irromper de um número musical. Sem aviso, as personagens começam a cantar e a dançar, quebrando completamente as convenções realistas que Anderson tinha estabelecido. É como se as emoções reprimidas fossem tão intensas, a linguagem falada tão insuficiente, que é inevitável uma expressão mais primária e visceral.

Este momento, à semelhança da cena do alienígena, funciona como uma rutura deliberada. Anderson está a sugerir que certas experiências humanas - o luto, a solidão profunda, a busca desesperada de empatia  - não podem ser contidas dentro das estruturas normais de comportamento e comunicação.

"Asteroid City" é também um filme sobre fazer arte, estruturado como uma peça dentro de uma peça. Vemos não apenas a história das personagens na cidade do meteorito, mas também os bastidores da produção teatral que conta essa história. Esta metanarrativa sugere que a própria arte - incluindo o cinema de Anderson - é uma tentativa de dar forma e sentido a experiências que, por natureza, resistem à compreensão.

Os atores que interpretam as personagens lidam com as próprias questões pessoais, ecoando os temas de perda e busca de sentido da narrativa principal. É como se Anderson estivesse a dizer que todos nós somos simultaneamente performers e audiência nas nossas próprias vidas, tentando dar sentido aos papéis que nos calham.

O que torna "Asteroid City" singular na filmografia de Anderson é como o estilo visual meticuloso serve perfeitamente os temas emocionais. Anderson confirma a originalidade do seu estilo: cada plano é uma pequena obra de arte, com a perfeição formal a amplificar o impacto emocional da história.

"Asteroid City" é, em última análise, um filme sobre a nossa necessidade humana de encontrar sentido num universo que frequentemente parece arbitrário e incompreensível. As tentativas das personagens em racionalizar o encontro alienígena espelham os nossos esforços para compreender as perdas e as mudanças que alteram irreversivelmente as nossas vidas.

Mas talvez a verdadeira sabedoria do filme esteja em sugerir que nem tudo precisa de explicação. Às vezes, a beleza está precisamente no mistério, na aceitação de que há forças - sejam elas alienígenas, morte, amor ou arte - que excedem a nossa capacidade de compreensão total. E talvez seja aí, nessa aceitação do inexplicável, que encontramos uma forma de paz.

Wes Anderson criou com "Asteroid City" não apenas mais um dos seus exercícios de virtuosismo visual, mas um filme sobre como navegamos os momentos em que a vida nos surpreende com eventos que alteram para sempre a perspetiva do mundo. É cinema de autor no seu melhor: pessoal, deslumbrante e a fazer ressoar algo de complexo dentro de nós. 

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