sexta-feira, abril 30, 2021

(DIM) Quando o indivíduo não se opõe ao caldo de cultura em que vive

 

Por opção escolho ver mais facilmente um filme do período neorrealista do que da época de ouro da Commedia all’italiana. Mas desconhecendo Sedotta e Abandonata, que Pietro Germi realizou em 1964, à sua descoberta me predispus. Até porque, nesta fase tão sombria que, eu e a Elza estamos a viver, há quem me incite a olhar para coisas que façam rir como forma de aliviar a tendência para intimamente me afundar. Como dizia Albert Memmi quando não tem outra solução o desesperado ri. Ou, pelo menos, esforça-se por o fazer.

É curioso constatar que Pietro Germi assinou vários filmes sobre a realidade muito difícil dos mais desfavorecidos - Il cammino della speranza (1950) e Il ferroviere (1956) - antes de se reciclar em filmes destinados a pôr as plateias bem dispostas. O que, na época, surpreendeu os amigos e colegas de profissão, que não viam como o seu feitio soturno se coadunaria com o exercício da sátira. E, anos depois, quando o reconheciam como grande mestre da comédia, ele teimava em valorizar a pretérita filmografia, ou seja os títulos que tinham obedecido aos cânones do neorrealismo.

O tema do filme é a da “honra” das mulheres, ou a da sua falta quando se foi violada como aconteceu com Agnese, cujo futuro cunhado aproveitara a oportunidade para a possuir, recusando-se depois a cumprir com o dever que o putativo sogro lhe exige. Porque, embora a responsabilidade fosse totalmente sua, Peppino desqualifica a adolescente como uma desavergonhada por não ter sido suficientemente forte no resistir-lhe.

No diálogo mais decisivo do filme estabelece-se uma confusão entre as palavras tumore e onore, que ilustram bem o que Germi pretende demonstrar: os preconceitos associados a uma certa cultura siciliana correspondem, de facto, a um  cancro com escassas possibilidades de se vir a curar. Porque, a exemplo dos, outros grandes mestres do género, mormente Risi ou Comencini, Germi aproveita a comédia para confrontar as plateias com os seus próprios pecados: quantos dos que se riram com essas histórias divertidas terão sentido o incómodo de nelas se espelharem a sua própria tacanhez? Quantas daquelas expressões faciais esbugalhadas inspiradas no cinema mudo, que Germi tanto se comprazia em pedir aos atores para arvorarem, eram as de quem ria com os dissabores de Vincenzo ( o notável Saro Urzi) e, nas mesmas circunstâncias, as replicaria por se verem a contas com os mesmos problemas de onore?

Se Germi até manifestava alguma simpatia com os personagens não se eximia de demonstrar quanto eles eram involuntários bonifrates de um caldo de cultura em que estavam imersos e de cujos valores e comportamentos não poderiam livrar-se. 

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