quinta-feira, abril 22, 2021

(DIM) Quando Kusturica foi atrás dos sonhos americanos

 

Em 1993 Emir Kusturica estreou Arizona Dream, que sintetiza a sua ida à América para olhar-lhe os sonhos e confrontá-los com a realidade de que nunca se conseguem dissociar. O resultado foi uma obra de culto, que se vê e revê, interpreta e reinterpreta, sem que se chegue a uma qualquer conclusão definitiva. Porque quem cria esses sonhos arrasta-se pela paisagem como fantasma sem consciência de em tal se ter transformado. E faz todo o sentido que, depois, de um breve vislumbre da urbe nova-iorquina todo o resto do filme tenha o deserto como cenário dominante, assumindo-se ele mesmo como personagem do filme, quer sugerindo a secura inerente às grandes imensidões poeirentas, povoadas de catos, mas  também no contraponto de convidar a uma qualquer possível evasão.

À partida temos Axel - um ainda muito jovem Johnny Depp - a ser involuntariamente trazido de volta ao Arizona natal, porque o tio Leo (Jerry Lewis) vai casar-se e quer tê-lo como padrinho da cerimónia. A exigência não se fica por aí: dono de um stand de venda de Cadillacs quer que Axel e o primo, Paul, lhe deem ajuda nessa tarefa que, viremos a descobri-lo depois, não é particularmente bem sucedida. E assim se tende a esvair um dos míticos sonhos americanos: o do inevitável sucesso dos empreendedores!

Logo no primeiro dia no novo trabalho Axel conhece Elaine (Faye Dunway) e a enteada (Lily Taylor). E o fascínio apaixonado pela primeira torna-se-lhe avassalador, verdadeiro sentido da vida. Doravante tudo fará para a ajudar a satisfazer o sonho de ter um avião, que a leve até à Papuásia por ser aí que lhe está reservada o acesso à felicidade absoluta. Ao invés Grace está obcecada pelo desejo do suicídio, frustrada com a evidência de sempre ficar secundarizada perante a capacidade da madrasta em sempre centrar em si as atenções. O que condiz com outra matriz da essência norte-americana: maldita a sorte de quem não passa de figurante ou personagem secundário numa sociedade em que importa tanto o sucesso individual.

Enquanto vai construindo absurdas máquinas voadoras, que raramente conseguem ganhar algum balanço para se libertarem do contacto com o chão, Axel não compreende como anda em bolandas por efeito dos sonhos do tio, de Elaine, de Grace ou dele próprio.

Não admira que a história se encaminhe para a tragédia: para a morte inesperada de Leo, para o suicídio bem sucedido de Grace, para a frustração de Paul, que não vê reconhecido o seu mérito ao imitar Cary Grant em A Intriga Internacional num concurso em que sai sob fortes assobios. Uma vez mais a constatação de o show biz ser miragem para muitos, mas escassos serem os eleitos a nele singrarem. Reduzidos à minúscula condição os personagens não podem evitar a bipolaridade, ora confiando no sucesso das aspirações, ora conhecendo o doloroso banho de realidade. Mesmo que o filme se conclua com a capacidade dos alabotes conseguirem voar...

Para ilustrar tudo isso Kusturica utilizou a câmara com assinalável competência, extasiando-nos nos lindíssimos planos panorâmicos ao som da música, sempre muito recomendável, de Goran Bregovic. 

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