segunda-feira, abril 19, 2021

(DIM) O mundo velho a morrer

 

Se gosto tanto de Cosmopolis  de David Cronenberg é por lhe reconhecer, em simultâneo, a coerência no anterior percurso do cineasta e a fidelidade ao romance premonitório de Don DeLillo. Este, um dos escritores contemporâneos que mais aprecio, apresentou em 2003 uma demonstração substantiva da perspetiva gramsciana de um mundo velho a morrer sem que ainda não se divise aquele que o irá substituir.

A crise dos subprimes, com tudo quanto se seguiu, só ocorreria cinco anos depois, mas o protagonista do livro, Eric Packer  é a súmula desses jovens especuladores, que enriquecem obscenamente à custa de operações bolsistas com raras coincidências com o que deveria ser a economia real.

Quase não saindo da limusina-caixão Packer vai recebendo sucessivos colaboradores com quem troca trivialidades, discute o sentido da vida ou, com a amante, chega a satisfazer a libido. Enquanto vai vendo a fortuna a evaporar-se, porque resulta fracassada a tentativa de colher dividendos com a evolução cambial do yuan, tem como objetivo ir ao barbeiro, que já fora o do pai, para cortar o cabelo. Só que a cidade está com o tráfego todo engarrafado naquela que é a metáfora sobre o impasse capitalista: a visita a Nova Iorque do presidente dos EUA ou o funeral de um cantor rap. Em ambos os casos a leitura não deixa de ir na mesma carga simbólica: as instituições políticas corroboram a paralisia do sistema económico e a cultura dominante - a do mainstream - está morta.

Ao mesmo tempo aparecem as contestações, que acrescentam imobilidade ao que imóvel estava: os que querem substituir as moedas por ratazanas, um atirador de tartes que acerta em Packer e, sobretudo, a ameaça muito séria de alguém projetar matá-lo.

Pelo meio Packer ainda encontra Elisa, a esposa que lhe rejeita o corpo e acaba por lhe exigir o divórcio, lembrando as loiras frígidas de Hitchcock, na confirmação de Cronenberg como cineasta que, de forma subtil, mistura nas narrativas as incontornáveis referências cinéfilas.

No encontro derradeiro com o assassino, Packer recebe deste a resposta para a questão de ter perdido toda a fortuna em apenas vinte  e quatro horas: ele não se libertara do espartilho da simetria com que analisava o comportamento das dinâmicas financeiras, quando elas desenvolviam-se caoticamente. O capitalismo não obedece a regras tangíveis e passíveis de serem domesticadas. E se Packer nem sequer tem a próstata simétrica - informação que o perturba! - como poderia encontrar essa «perfeição» nos fluxos financeiros? A falência decorre de ter procurado padrões perfeitos onde eles não têm qualquer cabimento. Porque nada o ligava a uma realidade verdadeiramente palpável, onde se pudesse orientar! E sem referências consistentes não admira que se perca na deriva autodestruidora. Em que terá sido ao mesmo tempo carrasco e vítima  ou  psicopata e cordeiro entregue à degola.

Discutível é a possibilidade de podermos esperar o fim do capitalismo de braços cruzados, porque ele acabará por entrar no processo de autofagia. Justifica-se sempre a tal frase de se desejar mais um esforçozinho para se ser revolucionário, e facilitar a afirmação desse mundo novo ainda por se anunciar.

Enquanto filme, Cosmopolis ainda merece atenção pelas interpretações irrepreensíveis e pela fluidez do ritmo com que evolui graças a uma alternância entre todos os tipos de planos possíveis e os travellings numa montagem competente e sem truques para impressionar os bacocos. 

Sem comentários: