terça-feira, novembro 12, 2019

Nimbos: As homenagens não são todas iguais


Quase sessenta mil são os nomes dos mortos no Vietname inscritos no memorial mandado construir para os celebrar. No último dos nove episódios que Ken Burns realizou para documentar os trinta anos de intervencionismo norte-americano na Indochina diversos entrevistados confessam a comoção sentida, quando ali se dirigiram. Num país de excessos, os seus habitantes também nas emoções revelam-se desmedidos. Mas poucos contestam o trágico desperdício de jovens vidas destruídas numa guerra, que os cinco presidentes nela envolvidos sabiam antecipadamente perdida. E, no entanto, mentiram despudoradamente nos discursos em que justificaram o envio de novas vagas de recrutas para morrerem sem proveito nem glória. Com o requinte final de abandonarem à triste sorte os aliados sul-vietnamitas a exemplo do que repetiriam recentemente com os curdos na Síria.  Não foi preciso  esperar pela chegada de Trump à Casa Branca para que os iludidos cúmplices dos EUA soubessem na pele o que é sentirem-se com as costas quentes num dia e logo solitariamente abandonados no meio das ruínas deixadas pelos seus aviões bombardeiros.
A homenagem aos mortos nem sempre se revela vã como no caso desse muro edificado em Washington em 1982. Mesmo que o veterano John Musgrave o julgue capaz de ter impedido uns quantos suicídios.
Menos emotivas, mas bastante mais justificadas foram as evocações a Jorge de Sena e Sophia agora culminadas com cerimónias  e eventos organizados para os rememorar. Além deles vieram-nos hoje outras memórias referentes a quem desapareceu do mundo dos vivos há cerca de dez anos: Bartolomeu Cid Santos e João Bénard da Costa. Um e outro também merecedores de duradoura recordação.
Foi através de um documentário de Jorge Silva Melo - excelentes todos quantos assinou até agora sobre diversos artistas plásticos! - que pudemos regressar à vasta obra de gravura, quase toda criada em Londres, onde, durante décadas, Bartolomeu Cid Santos formou gerações sucessivas de artistas na Slade  School of Fine Art. Quem teve o privilégio de com ele privar lembra-lhe a alegria e a generosidade com que fazia de cada encontro uma festa. Tomando como referências preferenciais Fernando Pessoa, Jorge Luís Borges e Tarkovski, tomou por temas os bispos, as sereias sorridentes, os labirintos e as paisagens melancólicas da Viagem no Inverno compostas em lieds por Schubert.
Quanto ao antigo diretor da Cinemateca houve quem lembrasse as tardes de quarta-feira no Liceu Pedro Nunes, onde era professor, onde conseguia prender a atenção dos miúdos (entre os quais o citado Jorge Silva Melo) ao falar.lhes de filmes, que eles nunca tinham visto. Já então estava em causa a preocupação com o ensino da forma de olhar imagens que, longe de constituírem um divertimento, deveriam servir para fazer pensar. Por exemplo as que viriam a ser muitos anos depois criadas pelo realizador Gabriel Axel a partir do romance da sua compatriota Karen Blixen. «A Festa de Babette», memorável filme, trazido à colação num oportuno zapping, demonstrava como o cinema pode - e deve! - realçar certas realidades cristalizadas, potencialmente abanáveis por quem as sujeite a inteligentes modelos de contestação. Na novela, e no filme correspondente, uma austera comunidade protestante confrontava-se com a tentação do pecado através da lauta refeição confecionada em sua intenção pela estrangeira, que com eles viera viver durante uma temporada. Um bom exemplo de como as certezas enquistadas de uns quantos podem ser desafiadas por quem ouse questioná-las...
12/11/2019

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