sexta-feira, novembro 29, 2019

Diário de Leituras: Quando Le Clézio foi viver cos os Emberas


Em 1969, J. M. G. Le Clézio está à beira dos trinta anos, quando chega a Panama City e se desagrada com o que a cidade pode proporcionar-lhe. Daí que parta para a fronteira com a Colômbia, ao encontro dos índios Emberas, que adivinha em iminente risco de aniquilamento cultural e com os quais julga capaz de muito aprender. Nomeadamente esse silêncio espesso, profundo, ameaçador, que conseguem fazer reinar à sua volta no meio da densa floresta.
«Haï», que designa o trabalho dos xamãs, quando em contacto com os espíritos só a eles acessíveis, é o título do testamento poético, que testemunha as experiências vividas com essa tribo ao longo de quatro anos. E tão determinantes que, em 2008, quando recebeu o Nobel da Literatura, a ela dedicou o seu prémio.
O livro conta como os índios dividiam o mundo entre duas forças antagónicas: haï seria a da energia, wandra, a da submissão. Mas, rejeitando um modelo de descrição antropológica, Le Clézio estruturou-o involuntariamente de acordo com uma estrutura semelhante ao de uma cerimónia mágica de cura. Ou seja com uma iniciação a Tahu sa, o olho que tudo vê, seguida do canto ou festa cantada (a Beka), culminando no exorcismo do corpo, o Kakwahai. Nesse sentido acaba por ser um livro iniciático com uma frase paradoxal: “um dia saber-se-á que a arte não existe, tão-somente a medicina”. A que é propiciada pelo curandeiro, xamã ou feiticeiro...
Le Clézio apresenta os procedimentos dos Embera como lógicos e naturais em comparação com os das sociedades de consumo, porque incluem rituais de alteração de consciência, cânticos e arte como estratégias destinadas ao tratamento mental do corpo.
Apreciando o relato da nossa distanciada perspetiva conotamo-lo com um tratado de semiologia, ainda que redigido de dentro por um autor empático. Esse universo ameríndio surge-nos como tão longínquo da nossa realidade, que impossibilita uma narrativa, uma intriga ficcional.  Mas podemos encontrar algumas âncoras em páginas como aquelas em que Le Clézio contrapõe a liberdade das mulheres às regras morais das sociedades ocidentais. Nomeadamente quando constata a possibilidade delas escaparem dos homens que deixaram de amar para procurar outro mais do seu agrado, ou abortarem mediante o recurso a bebidas à base de plantas com capacidades abortivas.
É como se, de súbito, dessemos um pulo a uma outra dimensão temporal, que não a nossa...

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