sexta-feira, novembro 08, 2019

Diário de Leituras: As várias maneiras de habitar o mundo (1)


Quando a grande maioria dos palpites sobre quem ganharia o Prémio Goncourt deste ano apontava para Amélie Nothomb com o seu romance «Soif», eis que o júri contrariou o vaticínio atribuindo-o a «Tous les hommes n’habitent pas le monde de la même façon» de Jean-Paul Dubois.
Dele já aqui dera referência, quando acabara de ler as trinta primeiras páginas do romance mas, agora, que concluí a leitura, ajuízo ter sido bem melhor do que, apressadamente, aventara. E merecedor da distinção pela estrutura solidamente construída, os personagens bem diferenciados dos comuns estereótipos e as referências mais ou menos explicitas a pertinentes problemas políticos e sociais. Nesse sentido não difere significativamente dos demais romances do autor onde facilmente encontramos homens de boa índole condenados a tudo perderem por causa das crueldades, que se lhes deparam.
Neste romance o protagonista é Paul Hansen que, em sucessivos flash backs conhecemos nas fases mais determinantes do passado até ter chegado ao sítio onde o encontramos: uma prisão de Montreal onde cumpre a pena de dois anos por ter agredido violentamente o patrão. E, porque esses sucessivos momentos biográficos coincidem com acontecimentos históricos bem definidos, tanto encontramos a mãe de Paul a suicidar-se no mesmo dia em que a viúva de Mao morreu ou a sua entrada no cárcere em 4 de novembro de 2008, quando Obama foi eleito presidente.
Personagem igualmente importante no romance é Patrick Horton, um membro dos Hell Angells, acusado de cumplicidade no assassinato de um infiltrado da polícia no gangue. Se a promiscuidade os incomoda, porque impeditiva da mínima intimidade, os dois homens acabam por criar um sólido elo de improvável amizade. Até porque estão, continuamente sujeitos a essoutra personagem intrusiva, que é o próprio edifício em que estão circunscritos: “a prisão engole-nos, digere-nos e, enrolados no seu ventre, feito das dobras numeradas do seu intestino, entre dois espasmos gástricos, dormimos e vivemos tanto quanto possamos alcançar”.
A ironia reside na dialética dos opostos entre as origens de Paul - nascido em França, filho de pai dinamarquês, radicado há muito no Canadá, casado com uma ameríndia meio irlandesa e com a mãe a viver na Suíça - e os espaços fechados em que se vê enclausurado, ora o edifício de cuja manutenção se incumbiu  durante uma dúzia de anos, ora a penitenciária onde faz o balanço de tudo quanto até então vivera.
Amanhã aqui prosseguirei a abordagem desta recém-premiada obra.

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