sábado, novembro 16, 2019

Diário de Leitura: O obstinado sentido de responsabilidade


No seu mais recente livro - «O Universo num grão de areia» - Mia Couto conta uma saborosa estória, que serve de exemplo para o que significa um inabalável sentido de responsabilidade.
Segundo ele o governo moçambicano decidiu tomar uma medida de grande interesse para o futuro do país, tão só consolidou a independência: enviou técnicos para diversas regiões da bacia do Zambeze para anotarem detalhadamente os caudais do rio nuns formulários elaborados para o efeito. Acontece que rebentou a guerra civil e o esforço foi esquecido por prioridades mais urgentes.
Anos depois  - em 1992 - as condições políticas fizeram ressurgir essa necessidade que, naturalmente, tinha de ser retomada a partir do zero. No entanto, numa dessas estações hidrométricas, os que para ela foram enviados tiveram a surpresa de encontrar o antecessor a ocupar uma casa cujas paredes estavam todas preenchidas com números registados a carvão. Estupefactos, concluíram que o colega não só prosseguira o trabalho ao longo desse longo hiato como, à falta de formulários, acabara por transformar a velha cabana num rigoroso registo dos seus dados.
Ler Mia Couto é sempre um prazer, mesmo quando se trata - como neste caso! - de uma recolha de textos publicados aqui ou acolá, ou redigidos para serem oralizados em discursos de circunstância e em conferências sobre os mais variados pretextos.
Um deles, datado de março deste ano, quando regressou à cidade natal, a Beira, depois da devastação nela causada por temível furacão, conclui que “em criança não nos despedimos dos lugares, pensamos que voltamos sempre. Acreditamos que nunca é a última vez.” Mas aquela ocasião dava-lhe o travo amargo do definitivo adeus.
Outros versam o medo, que ele reconhece ter sido um dos seus primeiros mestres, aquele que mais o fez desaprender. Um medo fabricado por quem tem medo que o medo acabe. Porque, antes de se fabricarem armas, criam-se fantasmas, que venham a justificar o seu uso. Daí surgirem muros em diversas latitudes. Sobre eles fica uma sábia conclusão: “É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha.” mas “a Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores”.
Lidas ainda só tenho umas dezenas de páginas, mas quantas luzes elas comportam...

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