domingo, novembro 10, 2019

Diário das Imagens em Movimento: «Um Dia Inesquecível» de Ettore Scola (1977)

Um Dia Inesquecível é um exemplo antológico do que significa o termo drama de câmara, que coincide com o teatro clássico no facto de nele se verificar a unidade do tempo (um dia), um espaço (um prédio ) e um ação (a relação amorosa entre dois seres que nada tenderia a aproximar).

Logo de início ficamos a saber que Hitler está de visita a Mussolini - estamos em 6 de maio de 1938, quando a Segunda Guerra Mundial já se perfila no horizonte - e grandiosas cerimónias são organizadas para receber com pompa quem pode dar o aval às pretensões do anfitrião na África Oriental. Entre os balillas, que então desfilaram estava o jovem Ettore, então com oito anos de idade. Salazar reproduziria essa ferramenta de propaganda na odiosa Mocidade Portuguesa.

Sophia Loren, maquilhada para dela apagar tudo quanto pudesse lembrar a sua imagem de sex symbol, é Antonietta Taberi, uma dona-de-casa impedida de acompanhar a família ao evento por ter demasiado que fazer na casa que partilha com o marido e a numerosa prole. Mas é uma assumida defensora do regime sobre o qual organiza um álbum de imagens, carinhosamente guardado junto com o retrato de Mussolini, que criara com botões, e com a inebriante recordação de ter descoberto a primeira gravidez, quando desmaiara ao ver o ditador passar perto de si montado a cavalo.

Há, porém, um inesperado incidente, de enorme significado simbólico e com consequências avassaladoras para as horas, que se seguirão: o pássaro foge-lhe da gaiola e vai parar à janela do vizinho, Gabriele, que estava decidido a suicidar-se nesse momento.

A conversa entre ambos vai ter um efeito mutuamente redentor: ela descobre um homem sensível, antítese do marido. Ao oferecer-lhe «Os Três Mosqueteiros», para que usufrua na leitura outras realidades, Gabriele insinua-lhe a possibilidade de encontrar satisfação noutras realidades, que não as comezinhas do dia-a-dia. E ao constatar como se revela tão fácil a transformação de um ser numa sua possibilidade melhorada, ele recupera gosto pela vida, mesmo que o espere a deportação para o cu de judas por não se lhe tolerar a homossexualidade.

A exemplo de Loren, Mastroianni desempenha um papel em total dissonância com o de macho latino, que se lhe colara até então (embora  O Belo António de Mauro Bolognini já constituíra, em 1960, a negação de tal estereotipo).

Bem tenta a porteira alertá-la para os perigos de se dar com o vizinho, que Antonietta vira costas à coscuvilheira e convida-o para com ela compartilhar um café. E se, a princípio, o confessado pendor sexual dele a incomoda, depressa supera o preconceito ao sentir-se valorizada, como nunca sentira até aí. Talvez pela primeira vez há quem a veja como sendo mais do que uma mera escrava do lar. Ambos vão partilhar as respetivas solidões, consumada na dinâmica da surpreendente intimidade. E, se no final, Gabriele é levado pela polícia, adivinha-se que, por trás da fachada de mãe de família, Antonietta vê brotar em si um novo despertar para a realidade à sua volta. O que fará desse dia, um marco inesquecível.

O filme inicia-se com um plano-sequência em que vemos Antonietta a passar por diversas divisões da casa, acordando a família cuja caracterização vai sendo definida como pertencente a um estrato social médio-baixo. Os temas começam a esboçar-se, desde logo com a demonstrada submissão da esposa ao marido e a rendição à lavagem cerebral imposta pelo fascismo. Mas, mais a diante, encontraremos o da rejeição do outro por ser diferente e a reaferição dos valores, que abre espaço à subversiva extraconjugalidade.

Os movimentos dos atores face à câmara, ou desta a rodeá-los, constituem uma espécie de dança, que antecipa a expressão da mútua sensualização. Mas as deambulações da câmara assumem outros sentidos: o de explicitar o objetivo da arquitetura fascista, que possibilitava a colocação de cada indivíduo sob o constante olhar dos vizinhos, dando substância à intenção programada de todos sentirem-se vigiados e potencialmente denunciados se adotassem comportamentos tidos como subversivos. Não deixa de ser irónico, que a filha de Antonietta seja interpretada por Alessandra Mussolini, sobrinha de Sophia Loren e neta do ditador, cujas ideias viria a recuperar na posterior adesão a um dos principais partidos italianos de extrema-direita.

Convirá, igualmente, olhar no tom intencionalmente esmaecido da fotografia, para retirar cor ao ambiente em que vivem os personagens e aproximá-los visualmente da cinzentude desse tempo moribundo.

Justificando a razão de ser do filme Ettore Scola diria que, através do fascismo histórico, pretendera denunciar o que ele legara duradouramente nas mentalidades ao impor normas rígidas do entendido como bom, diabolizando, e visando eliminar tudo quanto pudesse desviar-se desse cânone. Nesse sentido o filme continua muito atual como se conclui da realidade hoje vivida em diversificadas geografias.

Um comentário final para a sonoplastia:  durante todo o filme ouvimos a transmissão radiofónica da cerimónia fascista com ribombante música guerreira, as ovações da multidão, o discurso de Hitler e os entusiasmados comentários do locutor. E é essa permanente existência como pano de fundo, que contextualiza a estória e lhe acrescenta o sentido dramático de uma ameaça sempre latente.

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