terça-feira, novembro 26, 2019

Diário das Imagens em Movimento: «Manson: music from na unsound mind» de Tom O’Dell


Quando a contracultura acabou eu tinha treze anos e foi muito distanciadamente que vivi a sua herança musical. Em casa era impensável deixar o cabelo crescer para além da dimensão admissível a um «homenzinho» e calças à boca de sino nem vê-las, que era coisa de mariconços. Restava a música ouvida com sofreguidão e alguns livros sobre as religiões orientais, que foram o passo derradeiro dos conúbios místicos antes da total rendição ao ateísmo.
Na época impressionaram-me os crimes cometidos contra Sharon Tate e seus convidados, mas jamais voltei a sentir curiosidade sobre a maligna personalidade de Charles Manson. Daí que o filme de Tom O’Dell tivesse tudo para me interessar, quanto mais não fosse por me poder elucidar sobre a criação de uma personalidade tão perversa e capaz de exercer inacreditável fascínio junto das discípulas da sua seita ao ponto de as ter transformado em assassinas.
Confesso-me surpreendido com o que o documentário me deu a conhecer. Se não estranhei que Manson tivesse nascido numa família desestruturada em que o sentimento de rejeição se tenha consolidado desde o berço, nem que passasse a adolescência e a juventude mais tempo preso do que em liberdade, as coisas começaram a ganhar outro interesse quando várias testemunhas o dão como compositor de algum talento capaz de interessar um dos irmãos Wilsons (dos Beach Boys) pelos seus temas. A apresentação de algumas das gravações em estúdios discográficos constituem demonstração de quão perto esteve de integrar o mundo da pop music, constituindo-se como um dos seus bem sucedidos vultos de então. Caso para O’Dell formular a tese de ter catalisado nos homicídios a frustração do seu fracasso enquanto músico de sucesso...
A loucura de que dava mostras impedi-lo-ia, porém, de ir muito longe, não só pela irresistível vontade de manipular hordas de seguidores para as suas ideias distópicas e racistas, mas por nunca ter conseguido superar os traumas das primitivas rejeições. Megalómano por natureza, sempre reagiria como psicopata, quando as contrariedades viessem levantar obstáculos à sua nunca satisfeita vontade de reconhecimento.
Azar o das suas vítimas, quase aleatoriamente escolhidas para lhe darem a catarse e iludirem a perda de influência pressentida nos que se mantiveram ligados à seita até ao mediático desiderato. E lamente-se que, embora referindo-o de passagem, O’Dell não tenha explicitado de forma mais contundente o quanto esses crimes serviram as agendas conservadoras de Richard Nixon e Ronald Reagan, ambos apostados em declararem o óbito a uma América momentaneamente rendida a valores execrados pelos seus eleitorados. Nos anos seguintes ser hippie ou com eles parecer-se constituía motivo de crítica, se não mesmo de ostracização.
Cinquenta anos passados pode constatar-se Charles Manson foi o coveiro de uma efémera revolução, que abanou fortemente os valores ainda hoje responsáveis pelo que de pior tem a terra do tio Sam. Nesse sentido terá sido o idiota útil que deu ensejo à vitoriosa estratégia do complexo militar-industrial, da banca, das farmacêuticas e das grandes empresas ligadas ao petróleo e às petroquímicas para eliminarem de vez as vozes dissonantes face a uma cultura enfeudada a cristalizadas visões sobre a família, a sexualidade e, sobretudo, a distribuição de rendimentos. Os danos daí advindos revelaram-se incomensuráveis. E, na prisão, onde viveu até ao fim dos seus dias, Manson não deverá ter feito a mínima ideia do lamentável papel que lhe coubera no terceiro quartel do século vinte, aquele que se concluiria com a apressara retirada norte-americana de Saigão.

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