sexta-feira, novembro 22, 2019

Diário de Leituras: O bird watching como traço de carácter


Em «O fim do fim da terra» Jonathan Franzen confessa que quanto mais vou envelhecendo, mais me convenço de que a obra de um escritor de ficção é um espelho do seu carácter. Uma das características que se lhe associa é o gosto pelas viagens a múltiplas geografias para ver as mais diversas aves.  Graças a essa curiosidade tornou-se num tenaz paladino da sua conservação dados os riscos de extinção de muitas delas por exclusiva responsabilidade das atividades humanas. No alheamento geral, milhares de albatrozes morrem anualmente nas redes dos arrastões, que se lhes revelam invisíveis quando atraídos pelos peixes nelas aprisionados. Ou o grave problema das ilhas desérticas, que constituíam seguro local de nidificação para tantas espécies e onde visitantes ocasionais introduziram ratos, ratazanas e gatos todos eles convertidos em incansáveis destruidores das ninhadas.
Paradoxal, igualmente, a alteração da situação vivida pelas aves migradoras ao sobrevoarem e descansarem nos campos albaneses. Até 1985, data da morte de Enver Hoxha, o país era um paraíso avícola. A «democratização» pôs armas nas mãos de quase toda a gente, que passou a ter como distração preferencial matar indiscriminadamente essas aves em migração. Chegou-se ao ponto de quase nenhuma sobreviver de quantas tentam atravessar o país nesse trágico périplo. E no Egito sucede praticamente o mesmo.
Razão para que Franzen veja no capitalismo consumista um logro, tal qual o denunciou Jean Baudrillard, que considerava ter-se operado a substituição da realidade pela sua ilusória representação. Nesse sentido não deixa de ser caricatural a função dos parques naturais que funcionam como simulacros nos quais os turistas - na maioria brancos! - experienciam uma África cuja representação depende do dinheiro que tenham.
Essa distinção entre o real e a sua aparência colocou-se a Franzen logo aos 21 anos quando, chegado a Nova Iorque deu por si a surpreender-se com a ostensiva exibição do consumo dos ricos ou a sua não menos exibicionista frugalidade. Ou quando não compreendia que os negros de quem tinha medo, ainda mais medo tinham dele por ser branco numa sociedade marcadamente racista.
No fundo Franzen depressa tomou consciência da dialética dos opostos, razão que talvez explique a forma complacente como defende os romances de Edith Wharton, escritora abastada, atraente, caprichosa, senão mesmo execrável, mas capaz de criar romances ainda muito atuais apesar de redigidos século e meio atrás.

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