domingo, novembro 03, 2019

Diário das Imagens em Movimento: Homens muito determinados


Wim Wenders costumava dizer que era difícil criar argumentos originais para as obras, estando há muito inventadas todas as histórias possíveis. E, de facto, só olhando para o que caracteriza dois dos filmes ontem vistos, não é difícil encontrar-lhes a comum abordagem de um protagonista masculino decidido a fazer todos os possíveis e impossíveis para cumprir os objetivos. Ora, se olharmos para a História do Cinema, quantos exemplos podem ser evocados como tendo esse tema por pretexto? De alguma forma temos de dar alguma razão aos tycoons de Hollywood, que se puseram a aceitar a produção dos filmes sugeridos pelos realizadores e argumentistas se sintetizados numa só frase. Foi assim que nasceu a célebre fórmula: boy meets girl.
E, no entanto, mesmo sabedores de virmos a reencontrar narrativas anteriormente conhecidas, somos capazes de nos encantarmos, surpreendermos ou inquietarmos com a sua reciclada abordagem.
Vamos então aos dois filmes que me suscitaram agrado, mesmo que coincidindo no fracasso das expetativas dos seus protagonistas.
«Donkeyote», que Chico Pereira realizou em 2017, focaliza-se no seu tio Manolo e na ambição de percorrer os dez mil quilómetros do Trilho das Lágrimas percorrido pelos índios Cherokees, quando derrotados pelos exércitos da União e obrigados a deslocarem-se para reservas demarcadas mais a Oeste dos Estados Unidos. Não sabemos a razão de tão insensata aventura num septuagenário com problemas cardíacos e artroses. Mas pior ainda se afigura o projeto quando o sabemos apostado em fazer-se acompanhar pelo burro Górrion, seu confidente, e pela cadela fiel.
O documentário transforma-se, então, num road movie pelos campos e estradas da Andaluzia para que ele aí contacte uma empresa de bebidas gasosas, convencendo-a a apoiá-lo com os 12 mil euros necessários para o transporte do burro num navio de carga. E para que o previsto final se confirme acrescentam-se as cenas em que Górrion teima em não mexer um músculo, quando o dono o quer fazer atravessar um rio ou apanhar uma barcaça.
Depressa compreendemos o sentido do título do filme: Manolo é uma réplica do Don Quijote tendo Górrion como Sancho Pança. Existe a mesma incompatibilidade da subjetiva mundividência com a da realidade à sua volta, surpreendida com a originalidade da odisseia a que o ancião se predispõe. E a óbvia conclusão deste tempo não ser compatível com os sonhos de um homem, que sobressai na paisagem com a aparência de Clint Eastwood num dos westerns spaghetti,  que rodou nessa mesma região.
No outro filme - «O Exame» do romeno Cristian Mungiu - encontramos Romeo com um sonho ambicioso: ele que estivera emigrado com a mulher e regressara porque a revolução contra Ceausescu, lhe dera esperanças de uma mudança transversal em tudo quanto reconhecia mal no país, quer que a filha Eliza aproveite a bolsa ao seu alcance e vá concluir os estudos de psicologia em Cambridge. O problema ocorre na véspera de um exame decisivo, quando ela é agredida sexualmente num estaleiro de obras junto à escola. De repente o braço engessado parece obstáculo inultrapassável para alcançar as notas necessárias à prossecução do projeto.
Romeo opta então pela transgressão a tudo quanto acreditara até aí: enreda-se no vórtice de pedidos de favores fraudulentos para superar as regras estabelecidas. Mas essa cedência aos princípios já a adivinhávamos a claudicar quando acompanhamos os sucessivos e inexplicáveis ataques de que se vê alvo: uma pedra parte-lhe o vidro da sala, outra estilhaça-lhe o para-brisas do carro e sobra a sensação de estar a ser seguido por quem o faz sentir-se permanentemente ameaçado.
Há, igualmente, o adultério com uma antiga paciente, que engravida e é obrigada a abortar. Ela insta-o, sem sucesso, a decidir o que quer que seja relativamente ao futuro de ambos. Demasiado tarde Romeo constata ter entrado numa situação de rutura irreversível com Magda, a legítima que o expulsa de casa.
Suficientemente subtil para sugerir pistas sem jamais as explicitar, fica a sensação de Eliza e o namorado terem simulado a agressão sexual para evitar-lhe a mudança a distância incompatível com a vontade de continuarem juntos. Bem pode Romeo aventar que, daí a dez anos, ela lamentará ter desperdiçado a oportunidade única, de que dispunha nessa altura, mas adivinha-se o nenhum crédito atribuído às suas palavras por, subitamente, a rapariga ter compreendido o desfasamento entre os valores professados por ele e a prática, que lhe detetara no decurso desses dias.
Mungiu assina um filme sobre quem tanto quer e tudo acaba por perder dado o final em que  se vê condenado a dormir num sofá, repudiado pela mulher há muito sujeita à sua indiferença e pela amante, definitivamente esclarecida quanto ao seu fraco carácter.

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